A queda de Damasco às mãos da Al-Qaeda e dos seus vários heterónimos representa uma vitória da estratégia ocidental e da NATO
Um primeiro aviso ao leitor. Esta é ainda uma leitura a quente do que se passa na Síria, e as leituras a quente são um risco, sobretudo quando são feitas de fora e sob um dilúvio de disparates mediáticos que dizem factualmente a mesma coisa, lugares-comuns, e depois espremem a imaginação num combate imbecil preso nos campos da audácia, da mentira e, sobretudo, da ignorância.
Por tudo isto, os leitores perdoar-me-ão algumas imprecisões quanto ao futuro próximo, porque entre as certezas possíveis faltam muitos elementos factuais.
Uma primeira certeza: O presidente Bashar Assad caiu, essencialmente, porque agravou a situação nos últimos tempos, desde 2015, ao não dotar o exército nacional de mais e renovados meios para resistir ao crescimento e reforço da capacidade militar, que não eram segredo, da al -Qaeda (rebaptizada Hayat Tharir al-Sham - HTS - por recomendação das forças de intervenção estrangeiras ocidentais, querendo assim disfarçar o seu apoio direto ao terrorismo da organização fundada por Bin Laden). Além disso, Bashar Assad e os seus comandos militares minimizaram uma situação de guerra que só diminuiu de intensidade a partir de 2017 e numa situação em que 30% do território permanecia nas mãos de grupos armados ao serviço de interesses estrangeiros e com o objetivo de derrubar o regime.
Assad também enfraqueceu a sua posição ao rejeitar um projeto de Constituição proposto pela Rússia, na sequência do processo de Astana (participação de Moscovo, Ancara e Teerão), elaborado no estrito respeito pelo direito internacional e pelas normas da ONU.
Segunda certeza: os terroristas da Al-Qaeda ou do HTS, liderados pelo célebre seguidor de Bin Laden, Abu Mohammad al-Julani, deitaram as mãos a Damasco para se apoderarem dos instrumentos do Estado - o mais antigo do mundo - e tentarem assim estender, quando lhes parecer oportuno (se chegar o momento), a sua “lei islâmica” a todo o país.
Terceira certeza: al-Julani e o seu grupo continuam a ser considerados terroristas pelos Estados Unidos da América (e também pela União Europeia); Todas as tentativas de sectores do Estado profundo americano para retirar a Al-Qaeda, a Al-Nusra ou o HTS, seus homónimos, da lista de grupos terroristas foram vetadas pelos próprios órgãos legislativos dos Estados Unidos: O Congresso e o Senado.
Isso não impediu, no entanto, que al-Julani, de barba bem aparada, penteado e trajes à moda ocidental, fosse amigavelmente entrevistado pela Voz da América, porta-voz da CIA e do regime norte-americano, para expor sua nova linguagem e simular distanciamento - visual e no discurso - de sua essência terrorista. Pormenor horrível: os Estados Unidos continuam a oferecer 10 milhões de euros a quem contribuir para a captura e/ou morte de al-Julani.
A biografia deste capo fascista explica que tanto a Al-Qaeda como o ISIS ou Estado Islâmico lutaram para recrutar o então jovem e promissor al-Julani, que optou por se juntar ao grupo de Bin Laden. E a população da região de Idlib, permanentemente ocupada pela Al-Qaeda desde o início da intervenção estrangeira, pode muito bem explicar, por experiência própria, o terror de ser governada por al-Julani.
Quarta certeza: A queda de Bashar Assad e a tomada do poder por al-Julani - foi o que aconteceu, por mais que a rede de propaganda mundial tente fazer com que não seja bem assim - significa uma vitória da intervenção militar dos Estados Unidos, da União Europeia e da NATO por grupos terroristas iniciada em 2011 na Síria. Por outro lado, reflecte uma derrota para a Rússia, que foi obrigada a deixar cair Assad quando este decidiu desviar-se dos contornos da aliança com Moscovo. Além disso, confirmou-se que a prioridade de Moscovo é resolver favoravelmente os problemas criados pelo regime nazi-banderista de Kiev.
Quinta certeza: agora começa verdadeiramente a guerra civil na Síria. Até agora temos sido confrontados com uma intervenção estrangeira ao serviço dos interesses económicos, geopolíticos e geoestratégicos do mundo ocidental, com os Estados Unidos à cabeça, que, pela voz de Donald Trump, no seu primeiro mandato presidencial, admitiu roubar o petróleo sírio.
Tudo indica que será uma guerra civil entre as diferentes facções que lutaram contra Assad, principalmente as Forças Democráticas Sírias (curdos do YPG e contingentes do ISIS treinados na base de al-Tanf, ocupada pelas tropas americanas), e o Exército Nacional Sírio (um ramo das forças armadas da Turquia e da NATO), cada um com as suas próprias zonas de influência. Para além disso, existe uma nebulosa de grupos armados e milícias, cada um com os seus interesses regionais, religiosos e étnicos, que não ficarão de fora dos confrontos que se seguirão durante o falacioso "período de transição".
As Forças Democráticas Sírias são também apoiadas militarmente pelos Estados Unidos, tal como o HTS, mas perseguidas pela Turquia no âmbito da sua guerra contra os curdos, onde quer que se encontrem. Nesta frente específica, existe, portanto, uma oposição militar entre os regimes de Washington e Ancara, ou seja, uma guerra fratricida no seio da NATO. Na prática, todas estas organizações, incluindo o HTS, são apoiadas pelos Estados Unidos e pela NATO, formando o chamado grupo dos "rebeldes moderados" - apesar de existir uma facção considerada "terrorista" por Washington. Mais um exemplo da conhecida coerência ocidental, a "nossa civilização".
Uma vitória para o ambicionado Benjamin Netanyahu
Sexta certeza: A tomada do poder por al-Julani significa uma enorme vitória do sionismo liderado por Benjamin Netanyahu, conhecido aliado dos terroristas islâmicos, ao ponto de lhes dar retaguarda em campos e hospitais no interior de Israel e no sector ocupado dos Montes Golã. São conhecidos centenas de bombardeamentos aéreos israelitas contra o território sírio em apoio ao HTS e também no âmbito da sua guerra contra o Hezbollah e o Irão.
Esta vitória do terrorismo islâmico e a previsível divisão da Síria abre mais um caminho para a concretização do maior objectivo do sionismo internacional, a criação do Grande Israel desde o Nilo até ao Eufrates, rio que atravessa o Leste e o Norte do território sírio.
Sétima certeza: a queda de Damasco é uma grande vitória da Turquia no âmbito da teoria expansionista do neo-otomanismo praticada pelo neo-sultão Erdogan. Ancara também tem um caminho muito mais livre para continuar a perseguição do povo curdo dentro da Síria.
Oitava certeza: a nova situação criada em Damasco dá condições para que seja dado mais um passo importante na estratégia sionista dos Estados Unidos, da NATO e da União Europeia para desmembrar os grandes estados seculares do Médio Oriente; o objectivo é criar pequenas entidades étnicas e religiosas controladas a partir do exterior e inofensivas, facilitando assim a expansão do controlo militar e económico sionista e imperial sobre o Médio Oriente, para além de reforçar o domínio económico e o saque das matérias-primas da região, principalmente o petróleo e o gás natural. Esta estratégia funcionou no Iraque e na Líbia e os resultados estão à vista de todos.
Uma nota para recordar: o caso sírio demonstra, mais uma vez, que uma das mais importantes estratégias ocidentais na via do globalismo é o desmembramento dos Estados e organizações transnacionais que defendem a validade do direito internacional e não reconhecem a ordem internacional baseada em regras. A intenção expressa pelos círculos ocidentais de desmembrar a Rússia numa miríade de Estados, após a implosão da União Soviética, teve agora uma confirmação em grande escala.
Nona certeza: o Estado mais antigo do Mundo, mosaico de comunidades, religiões, etnias e confissões que se manteve unido e harmonioso durante séculos, até ao início da invasão ocidental em 2011, caminha rapidamente para o colapso e extinção, não sendo difícil antever perseguições e terror contra as comunidades minoritárias, nomeadamente os cristãos ainda apegados a ritos e tradições do tempo de Jesus Cristo.
Desde o início da agressão ocidental, o número de cristãos na Síria diminuiu de sete para três por cento da população. Em numerosas aldeias cristãs, como al-Sukhna, Kanayé, Maloula, Chabadin e Bakha, as populações sobreviventes podem testemunhar o terror e os episódios de assassinatos a que foram sujeitas por grupos islâmicos ditos “rebeldes” e “moderados”, no seu papel de procuradores da NATO. Nas três últimas aldeias mencionadas, ainda se fala aramaico, uma língua que foi usada há dois mil anos, nos tempos de Cristo.
Décima certeza: a queda de Damasco nas mãos dos terroristas sunitas, aliados objectivos do sionismo, encoraja ainda mais o Estado de Israel a desenvolver a tão desejada guerra contra o Irão xiita, outra via possível para a guerra nuclear. A transformação e eventual extinção da Síria enfraquece profundamente o chamado Eixo da Resistência, a única entidade que, na cena internacional e regional, tem feito frente aos desígnios do sionismo internacional e lutado de forma consequente pela aplicação do direito internacional para que os direitos humanos sejam respeitados. direitos inalienáveis do povo palestiniano.
Democracia? Nem sequer a vejo
Décima primeira certeza: da mesma forma, o Líbano é ainda mais frágil face ao sionismo porque a ascensão sunita na Síria constitui um golpe muito sério para o Hezbollah, o movimento xiita responsável pela resistência nacional e pelas derrotas humilhantes infligidas ao Estado de Israel, mantido no que respeita às suas ambições em território libanês. Israel pretende ocupar parte do sul do Líbano como tampão para ataques contra a região norte do país, a Galileia, para além de, a partir de agora, ter praticamente garantido o livre acesso às jazidas de petróleo recentemente descobertas no Mediterrâneo Oriental e que tem vindo a disputar com Beirute, naturalmente com objectivos cleptómanos perante os quais o direito internacional e o direito marítimo não valem nada.
Décima segunda certeza: a história das guerras imperiais, sobretudo as mais recentes desde a longa e falhada intervenção militar no Afeganistão, prova que estas acções terroristas nada têm a ver com a implementação da democracia e a democratização dos países atacados - ao contrário do que rezam a propaganda e a opinião única que nos subjuga ou, pelo menos, pretende subjugar. Olhemos para o regresso dos talibãs a Cabul, para a situação caótica das potências regionais fragmentadas no Iraque - com o governo oficial barricado em fortificações para lá da "linha verde" em Bagdade - e para o desaparecimento, em termos reais, do Estado líbio: continua a ser claro o que significa democracia e democratização no discurso ocidental.
Décima terceira certeza: o caso sírio é mais um exemplo do tipo de respeito que os Estados membros das organizações e alianças ocidentais cultivam em relação aos acordos que assinam com terceiros. A Turquia chegou a um acordo com a Rússia e o Irão, em Setembro de 2017, em Astana, segundo o qual faria tudo o que estivesse ao seu alcance para reduzir a intensidade dos combates, a fim de criar condições para o estabelecimento de uma plataforma política capaz de assegurar uma nova realidade nacional síria, mais pacífica e mais inclusiva.
O regime de Ancara, pelo contrário, aproveitou o tipo de limbo criado por este acordo para reforçar o apoio ao HTS e ao Exército Nacional Sírio e criar condições para a revolta armada com efeitos devastadores que agora ocorreu.
Em relação ao acordo de Astana, tal como em relação aos acordos de Minsk sobre a Ucrânia, ficou demonstrado que os países da NATO, como a França, a Alemanha e a Turquia, e a própria aliança, celebram acordos com outras nações e entidades deliberadamente de má-fé, acabando por explorar as decisões que visam a procura de soluções pacíficas e as garantias dadas por eles próprios como instrumentos para promover o regresso à guerra com capacidade e intensidade acrescidas.
Este comportamento é, como ficou demonstrado, um pilar da essência da NATO. E o regime russo caiu na armadilha duas vezes em menos de uma década.
Décima quarta certeza: existe uma aliança operacional militar entre o nazi-bandarismo do regime de Kiev e os grupos fascistas que se reivindicam do Islão e que agora tomaram o poder em Damasco. O regime de Zelensky treinou bandos de mercenários "islâmicos" em território ucraniano para depois se infiltrarem na Síria, recorrendo aos serviços úteis dos banderistas de Azov e dos conselheiros da NATO - em "reserva", claro, presentes no terreno pelo menos desde o golpe da Praça Maidan, em 2014. A colaboração entre as forças nazis ucranianas e os chamados terroristas islâmicos, especialmente os oriundos de territórios da antiga União Soviética, remonta pelo menos a 2009, de acordo com investigações independentes que foram publicadas - e censuradas nos meios de comunicação social globais.
Os terroristas na Síria receberam informações sensíveis do GRU, o serviço de espionagem e polícia política do regime de Kiev, como revelaram dirigentes desta instituição; além disso, o aparelho militar banderista forneceu drones e meios de guerra eletrónica à Al-Qaeda e afins, que utilizaram na fase decisiva da agressão estrangeira, identificando alvos e "cegando" as comunicações do exército ao serviço de Assad.
Conclusão a tirar de imediato: a queda de Damasco às mãos da Al-Qaeda e dos seus vários heterónimos representa uma vitória da estratégia ocidental e da NATO, em particular do recurso operacional ao chamado terrorismo islâmico para destruir Estados fortes e seculares no Médio Oriente. Esta vitória foi alcançada contra a corrente da história actual no sentido da multipolaridade e poderia significar um novo fôlego da ordem internacional imperial e colonial "baseada em regras" para se impor ao estabelecimento global da validade do direito internacional. No entanto, como aconteceu no Afeganistão, onde os Talibãs sucederam aos Talibãs vinte anos depois; ou na Líbia, onde o caos criado pela invasão atlantista dificulta ao Ocidente a exploração plena dos recursos naturais do território; ou no Iraque, onde as forças de ocupação da NATO, entre as quais predomina o contingente norte-americano, não têm um momento de paz devido aos sucessivos ataques das forças patrióticas, pode acontecer que o sucesso alcançado em Damasco não passe de uma patética vitória de Pirro, embora criminosa, devastadora e sangrenta, e o feitiço acabe por se virar contra o feiticeiro.
Fonte:
Autor:
José Goulão
José Manuel Goulão é um jornalista português