A “civilização ocidental” cria os seus monstros, alimenta-se deles, associa-os à própria sobrevivência.
É compreensível que o leitor não tenha estômago, tempo e paciência para frequentar anualmente esse happening de decadência cultural, cívica e humanista a que chamam Festival da Eurovisão. Numa outra perspectiva, porém, saiba que não é fácil encontrar um concentrado tão perfeito, directo e completo para ilustrar o estado de degradação a que chegou a “civilização ocidental”, aquela que diz carregar os valores que enformam a sociedade perfeita e o ser humano ideal.
Num Festival da Eurovisão resumem-se os comportamentos, os tiques e as práticas inerentes à necessidade de continuar a impôr à generalidade do mundo um conceito civilizacional, cultural e humanista superior, único e inquestionável. O Festival da Eurovisão tem, por isso mesmo, uma virtude insubstituível: dá-nos a oportunidade de observarmos um Ocidente desnudado de cuidados e disfarces hipócritas usados em circunstâncias não enquadráveis na área do entretenimento, deixando cruamente perceber aquilo em que se transformou – exactamente o contrário do que diz ser.
Que o espectáculo e as incidências em seu redor sejam uma réplica da mediocridade tóxica que Hollywood exporta como arte oficial do neoliberalismo globalista e das oligarquias dominantes não temos de nos surpreender. É a ordem natural e colonial das coisas, a cultura formatada para transformar as grandes massas de cidadãos em rebanhos de imbecis da mesma maneira que o aparelho transnacional mediático gera exércitos de ignorantes, pessoas desabituadas de se interrogarem sobre as realidades que as cercam.
Ora a União Europeia de Radiodifusão, esse antro de perversão ética conhecida anglo-saxonicamente por EBU, é um braço qualificado da central globalista de propaganda que reúne as rádios e televisões públicas dos países europeus, todos eles europeus de gema como por exemplo Israel e a Austrália, talvez num futuro próximo a Nova Zelândia, o Canadá, os Estados Unidos. Aliás, todos estamos informados, através de uma prática quotidiana que se prolonga há séculos, de que o Ocidente é onde o Ocidente quiser.
Cabe à EBU organizar anualmente o Festival da Eurovisão onde, no essencial, se promovem o ruído em vez da música, versículos delicados como martelo-pilão no lugar da poesia e a incandescência de luzes que cegam aconselhável para criar um ambiente irracional de plena fruição niilista.
A EBU abusa do seu direito discricionário ao transformar a música, a poesia e a encenação no equivalente ao fast-food das artes de palco – nada disso deveria esperar-se do tão falado serviço público. É verdade que o espectador só consome se quiser, tem sempre a possibilidade, graças às benesses do mercado, de emigrar para as estações privadas – que lhe servem mais do mesmo porque assim determinam a lei do lucro e o culto da cabeça oca. O consumidor não se sente satisfeito? Culpa do próprio, esquisito ou demasiado exigente.
Nada de políticas
O Festival da Eurovisão tem um dogma existencial: é um acontecimento apolítico. E a EBU assume esse estatuto até às últimas consequências, afinal com a mesma seriedade com que a “civilização ocidental” defende os direitos humanos.
Para que as tentações políticas sejam expurgadas do sistema, a EBU censura, persegue, ameaça, expulsa, mente, mas graças a esses comportamentos tão inequivocamente democráticos cumpre-se o desígnio sagrado.
Provavelmente, o festival deste ano foi o mais elucidativo quanto ao que representa a EBU como instrumento da “nossa civilização”, dos nossos valores.
A Rússia foi liminarmente excluída do concurso por ter invadido a Ucrânia; à Bielorrússia aconteceu o mesmo, embora não se saiba muito bem o que fez, talvez penalizada por ser aliada de Moscovo.
Nunca a EBU admitiu excluir a Ucrânia por conduzir há dez anos uma guerra contra as populações civis de vastas regiões do país, aliás de acordo com as consignas nazis e racistas do “nosso” regime de Kiev.
Como entidade apolítica, não cabe à EBU inteirar-se dos crimes cometidos por um regime nazi; aliás, no ano em que foi invadida pela Rússia a Ucrânia teve o privilégio visivelmente apolítico de ganhar o Festival da Eurovisão.
Este ano os ambientes em redor do festival toldaram-se um pouco mais porque alguém, completamente a despropósito e parece que confundindo o que não pode ser confundível, alegou que também Israel deveria ficar de fora do concurso devido ao genocídio e à limpeza étnica que continua a praticar contra o povo palestiniano.
Nada disso, contrapôs a EBU, excluir Israel seria o mesmo que politizar o festival. Além disso, é completamente descabido comparar o caso de Israel ao da Rússia. Explica a EBU que o festival é um concurso de estações públicas de rádio e TV e não de países. A organização deve avaliar se os comportamentos dessas empresas respeitam as normas apolíticas do concurso e, analisando as circunstâncias, concluiu que a televisão pública sionista se comporta como deve ser, o que não acontece com a da Rússia, que apoia a invasão da Ucrânia. Deveremos deduzir que a televisão israelita trata de maneira objectiva e apolítica as operações militares de chacina em Gaza, além de funcionar sob censura militar. Faz todo o sentido.
Em matéria de coerência o comportamento da EBU não fica por aqui. Alguém lembrou aos organizadores do festival que se o certame se disputa entre empresas de rádio e televisão por que razão se usam as bandeiras dos países e não as das instituições concorrentes? Não será isso uma opção política e até nacional-populista? A EBU respondeu que se trata de uma falsa dúvida, sem qualquer lógica. E mais não disse.
Mulheres corajosas e de paz
Apesar destas convincentes explicações, continuou a haver gente recalcitrante quanto à presença de Israel no concurso, pessoas visivelmente antissemitas, quiçá simpatizantes do Hamas, como informados comentadores, organizadores, generais e politólogos desde logo sugeriram.
Para desgosto da EBU e de vários outros meios dotados com a vocação civilizacional do Ocidente, o rebanho em construção tem ainda muitas dissidências. Demasiadas dissidências – até, imagine-se, entre membros dos júris nacionais, e mesmo entre os concorrentes. Assim como há aqueles participantes que ainda insistem em apresentar música e poesia, sujeitando-se, inapelavelmente, à secundarização e ao desrespeito pelo seu trabalho, há também os que não desistem de pensar, de se interrogar e até de invocar a paz – o que levou a EBU a sacar da censura e da ameaça de penalizações tal como, em seu tempo, Hitler puxava da pistola quando ouvia falar em cultura.
Felizmente, para orgulho de todos nós, foram portuguesas as vozes que melhor se ouviram, vozes de cidadãs, de mulheres de paz, que tiveram a coragem – é preciso ter coragem num terreno de tal maneira minado – de se distanciar da cumplicidade objectiva da EBU e afins com a carnificina e a limpeza étnica que o regime sionista comete há 76 anos na Palestina. “A paz prevalecerá”, proclamou a autora-intérprete Iolanda ainda em palco, no final da sua belíssima actuação. A cantora Mimicat, como porta-voz do júri nacional, enviou igualmente uma mensagem de paz, salientando que o fez ciente de que “somos um país que acredita na liberdade e na paz”.
As vozes bem audíveis destas duas mulheres resgataram, em cenário global, a letra da Constituição e a dignidade do país de Abril que tantas vezes são hipotecadas, por sistema, tacanhez e subserviência, pelos titulares dos mais elevados cargos políticos.
Sabemos que Mimicat e Iolanda não são exemplos isolados; no meio artístico e musical português há muitos actores, actrizes, compositores, cantores e cantoras que usam os seus talentos sem esquecer causas nobres como a paz, a solidariedade e as liberdades, algumas tão ameaçadas como são as de opinião e expressão. E usam-nos com muita qualidade, para benefício de todos nós e até para prestígio do país.
O chamado “voto do público” ou “televoto” em Portugal, porém, não alinhou com as posições humanistas das representantes portuguesas, seguiu antes o “fenómeno” registado em quase todos os lugares onde houve “votações”, isto é, a contagem de chamadas telefónicas em massa num processo hermético no qual os espectadores não têm acesso a qualquer garantia de fiabilidade dos resultados. A canção de Israel, isto é, a delegação sionista no festival, foi a que recebeu mais “votos” em 15 das contagens realizadas, incluindo Portugal, contrariando de maneira bastante acintosa a escassa receptividade que teve entre os júris nacionais.
Sendo quase certo que nenhum “votante” saberá sequer alinhar duas notas da cantoria sionista, que passaria despercebida não fosse o alarido em seu redor, estamos perante um voto politicamente induzido num certame “apolítico”.
E aqui, perante a enxurrada de supostas chamadas telefónicas de apoio à presença sionista, deixando toda a concorrência a uma distância inusitada e sem qualquer nexo com os pareceres dos jurados em cada país, várias hipóteses de explicação podem aventar-se: uma fraude em massa no processo telefónico assegurada em cada terminal de contagem; uma monstruosa mobilização de “votantes” patrocinada pela mafia sionista transnacional (não confundir com as comunidades judaicas espalhadas pelo mundo); ou – o que será o mais inquietante – uma grande manifestação de apoio das populações europeias, e de outras zonas do mundo, à delegação de um país comprovadamente responsável por uma política genocida e sangrenta conduzida sob os olhos do mundo inteiro. Se for este o caso, teremos de reconhecer que a imagem de Israel “concorrente perseguido” cultivada por toda a estratégia “apolítica” da EBU e, sobretudo, a poderosíssima vaga mediática internacional para branquear os crimes sionistas têm um êxito assombroso. À luz desta hipótese, o estado de indigência e insensibilidade de grandes massas internacionais perante os crimes de guerra sionistas está muito mais avançado do que seria de supor.
Um microcosmo
A EBU, ao aglutinar as estações públicas de rádio e televisão dos países “civilizados”, é um microcosmos do aparelho de imposição da corrente política e geoestratégica neoliberal, de mentalidade colonial, dominante no chamado “Ocidente global”.
Daí que o carácter “apolítico” invocado a todo o momento seja parte da sua estratégia de manipulação, uma falsificação grosseira da realidade.
Na preparação e emissão do Festival da Eurovisão, tal como acontece regularmente noutros anos, talvez com menor evidência, tornou-se claro que as preocupações “apolíticas” dos organizadores do certame tentaram esconder um apoio político específico à participação sionista, desde logo estampado nas alegações esdrúxulas segundo as quais as razões que determinaram a exclusão da Rússia não se aplicam ao Estado de Israel.
Depois assistiu-se a uma perseguição e a uma actividade censória doentias contra tudo o que fosse, ou mesmo parecesse, uma contestação da política genocida israelita ou um gesto de solidariedade para com o povo palestiniano. Ou até contra uma simples proclamação em defesa da paz – um conceito que, como salta cada vez mais aos olhos de todos, se tornou verdadeiramente subversivo ou um sintoma de traição em todo o Ocidente.
Os esbirros da EBU abandonaram todos e quaisquer filtros de conveniência quando se tratou de censurar a eito para proteger Israel. O som das emissões nas meias-finais, nos ensaios e na final foi manipulado de modo a diminuir ou abafar os apupos e os protestos na sala contra a presença israelita; a actuação de um intérprete convidado na abertura de uma das sessões foi apagada dos registos oficiais do festival porque o cantor exibiu uma pulseira com símbolos associados à causa palestiniana; são conhecidas igualmente várias tentativas dos organizadores para ocultarem que a representante portuguesa Iolanda actuou com as unhas solidariamente decoradas com simbologia palestiniana. A publicação do vídeo oficial da sua actuação foi protelada até ao momento em que a RTP, honra lhe seja feita, decidiu intervir.
Durante uma conferência de imprensa, o representante holandês teve um gesto espontâneo que a enviada de Israel e os fiscais da organização interpretaram como sendo hostil à presença sionista. Ao cabo da perseguição que logo lhe foi movida acabou por ser expulso, vítima de uma provocação montada num ápice e à qual não teve experiência para resistir. Por ironia do destino, o rapaz fora apurado para a final com uma espécie de redacção pateta e pueril sobre as delicodoces maravilhas da União Europeia capaz de derreter até às lágrimas qualquer federalista mais sensível. De nada lhe valeu: calaram-no sumariamente e nem sequer recebeu qualquer conforto solidário da TV pública neerlandesa, além de fazer agora parte da avultada lista mundial de antissemitas assim definidos pelas autoridades sionistas. Um rol que, aliás, acaba de ser engrossado com a presença de um “sionista cristão” de luxo, o presidente dos Estados Unidos, Joseph Biden, ao cometer o pecado de ameaçar (apenas ameaçar, como é óbvio) suspender a entrega de armas ao regime sionista para continuar o seu genocídio do povo palestiniano.
Comentadores geopolíticos norte-americanos asseguram que o sionismo internacional controla o aparelho mediático e a política externa dos Estados Unidos. Têm certamente as suas razões para o afirmar.
A realidade internacional que podemos acompanhar e escalpelizar em todas as suas cambiantes confirma-nos isso e vai mais além. Não existe actualmente qualquer entidade no mundo, qualquer lei ou mesmo qualquer “regra” da ordem internacional definida pelos Estados Unidos capaz de conter o comportamento arbitrário, criminoso e ilegal do regime de Israel. O sionismo internacional assume, através das práticas do governo israelita, as mais gravosas decisões contra as mais elementares normas de convívio internacional, de respeito pelos povos, pelas pessoas, pelas leis, pelos direitos humanos. Cumprindo a regra de ouro do sionismo como uma variante de fascismo, o regime de Israel comporta-se como se não fosse deste mundo, respondendo apenas perante um deus, como invocam muitos dos seus dirigentes mais representativos.
Os episódios do Festival da Eurovisão, em escala reduzida mas com um impacto internacional considerável, mostram que os tentáculos sionistas actuam em todas as áreas onde seja oportuno e conveniente mostrar quem manda. Neste caso, ganhar o certame não era sequer uma prioridade. Bastou mostrar que uma delegação sionista estará presente sempre que queira, independentemente das circunstâncias, das atrocidades cometidas pelo país, e que a sua vontade nunca deixará de prevalecer sobre quaisquer contestações.
Somando exemplos sobre exemplos de comportamentos que tentam branquear os crimes israelitas, os mais atrozes desde os tempos de Hitler, parece cada vez mais difícil adivinhar no horizonte as hipóteses de conter este rolo compressor, assassino e, comprovadamente sem limites.
A “civilização ocidental” cria os seus monstros, alimenta-se deles, associa-os à própria sobrevivência. E nada garante, levando a sério declarações e intenções só aparentemente tresloucadas proferidas por expoentes sionistas, que não venha a ser vítima deles.
Fonte:
José Manuel Goulão é um jornalista português