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Cuba e a vergonha

Em tempos difíceis como os que estamos a viver e outros que virão, se é verdade que há muitos que perderam a sua vergonha, também é verdade que há milhões de homens e mulheres que a mantêm intacta, por Cuba e para Cuba.  

Cuba viveu dias muito difíceis nos últimos dias. A deterioração da produção de electricidade na ilha, com centrais envelhecidas e uma falta crítica de peças sobressalentes, associada à escassez de combustível, levou à desconexão do Sistema Elétrico Nacional. Durante vários dias, os cubanos tiveram de lidar com a ausência total de electricidade e com todas as perturbações associadas. Inevitavelmente, o desconforto da situação gerou protestos sociais em várias cidades do país, maioritariamente pacíficos, embora alguns violentos.

Os principais meios de comunicação social do Ocidente, tradicionalmente hostis à Revolução Cubana, têm feito uma cobertura amplamente irresponsável da situação, com claros preconceitos ideológicos contrários ao projeto socialista de Cuba, o que torna impossível extrair dessas análises elementos para uma compreensão objetiva das causas fundamentais que conduziram a ilha à sua situação atual. Tanto mais quando insistem em vê-la fora do panorama socioeconómico em que o país se desenvolve.

Olhar para Cuba num contexto regional ajuda a compreender, em primeiro lugar, que a crise energética da ilha não é um cenário extraordinário, mas infelizmente bastante comum na região. Construir e manter um sistema energético moderno e fiável é um desafio extraordinário para as economias em desenvolvimento. A dinâmica das sociedades contemporâneas impõe uma elevada procura de energia às capacidades de produção dos países, à medida que se vai acrescentando um número infinito de aparelhos eléctricos, ao mesmo tempo que o aumento das temperaturas médias globais, as secas e outras perturbações climáticas colocam uma pressão adicional nas redes, que muitas vezes ficam perigosamente sobrecarregadas.

Por exemplo, em Maio de 2024, no México, as temperaturas elevadas e o consequente aumento da procura levaram a apagões em 16 dos 32 estados do país. Na Costa Rica, a seca reduziu drasticamente a capacidade de produção do país, que depende em 70 por cento da produção hidroeléctrica, obrigando ao racionamento do consumo de electricidade. Uma situação semelhante afectou a Colômbia, cujos reservatórios permanecem 16 pontos abaixo da média histórica. No Equador, a seca e a obsolescência da produção levaram a cortes de energia de até 10 horas por dia. A Venezuela também tem sofrido apagões em vários estados do país devido às sanções dos EUA, à sabotagem interna e à deterioração das infra-estruturas energéticas. Na ilha vizinha de Porto Rico, uma comunidade americana, os apagões são frequentes, com situações como a de 13 de Junho, quando um corte deixou mais de 300.000 clientes sem serviço.

Sem dúvida, Cuba tem actualmente um dos piores cenários de geração da região. A ilha enfrenta as mesmas situações climáticas e a deterioração das infra-estruturas que são comuns aos países da zona, mas com a agravante significativa de que há mais de sessenta anos que a nação tem de enfrentar um bloqueio económico, comercial e financeiro, intensificado por Donald Trump na pandemia e que o governo de Joe Biden deixou intocado nas suas disposições mais agressivas, incluindo a continuação da inclusão da ilha na infame lista de países patrocinadores do terrorismo, o que dificulta qualquer tentativa de acesso a financiamento para ajudar a ultrapassar a crise.

Para se ter uma ideia da dimensão do custo material, o custo humano é mais difícil de avaliar, basta ver o recente relatório preparado por Cuba para a votação pela Assembleia Geral da ONU, a 30 de Outubro, da resolução 78/7 intitulada "Necessidade de pôr fim ao embargo económico, comercial e financeiro imposto pelos Estados Unidos da América contra Cuba".

Só entre 1 de Março de 2023 e 29 de Fevereiro de 2024, os danos e perdas materiais causados pelo bloqueio ascendem a mais de cinco mil milhões de dólares, cerca de 189 milhões de dólares a mais do que o valor apresentado no relatório anterior. Na ausência do bloqueio, o PIB de Cuba, a preços correntes, poderia ter crescido cerca de oito por cento em 2023. Em mais de seis décadas, os prejuízos acumulados ascendem a um bilião e 499,71 mil milhões de dólares.

Especificamente no sector da energia e mineração, o relatório apresentado pela ilha detalha que os danos acumulados no período ascendem a nada menos que 388 milhões 239 mil 830 dólares. Desde 2019, o governo dos Estados Unidos vem perseguindo navios e empresas de navegação que transportam combustível para a ilha. Só nesse ano, 53 navios e 27 empresas foram sancionados.

Empresas como a italiana Termomeccanica, adquirida pela americana Trillium e a firma Accelleron, recusaram-se a fornecer ao país partes e peças indispensáveis à manutenção das centrais termoeléctricas. Em conseqüência desse facto, aliado à falta de recursos financeiros, os ciclos de manutenção foram alongados, muitas vezes não sendo cumpridos. Actualmente, 13 das 15 unidades de produção estão fora do ciclo de manutenção.

Compreender a crise electro-energética cubana implica, pois, com toda a justiça, ter em conta o quanto o bloqueio norte-americano está a afectar todo o tecido económico, produtivo e social da ilha. Sem exonerar as responsabilidades políticas que possam existir internamente, nenhuma análise séria pode ignorar ou desconhecer o cerco contra a ilha como primeiro factor da crise actual. A narrativa da grande imprensa corporativa, cúmplice do Ocidente, procura apresentar como prova do fracasso do socialismo o que é, antes de mais, responsabilidade do imperialismo.

Não é a primeira vez que aqueles de nós que nascemos nesta ilha nos encontramos numa situação complexa. Vale a pena recordar, talvez, uma anedota que expressa um dos significados profundos do processo revolucionário cubano desde os seus inícios no século XIX. Num momento de desespero, em 1871, durante a Guerra dos Dez Anos, quando faltavam víveres de guerra, alimentos e medicamentos e a pressão sobre as tropas que operavam em Camagüey era cada vez maior, vários oficiais abordaram o major-general Ignacio Agramonte, perguntando-lhe com o que poderia contar para continuar a luta em condições tão desesperadas, ao que Agramonte respondeu sem rodeios: "Com vergonha!

Essa vergonha ajuda a compreender algumas das páginas mais extraordinárias da história de Cuba. Em tempos difíceis como os que estamos a viver e outros que virão, se é verdade que há muitos que perderam a vergonha, também é verdade que há milhões de homens e mulheres que a mantêm intacta, por Cuba e para Cuba.

 Fonte:

Autor: José Ernesto Nováez Guerrero

José Ernesto Nováez Guerrero Escritor e jornalista cubano. Membro da Associação Hermanos Saíz (AHS). Coordenador da secção cubana da Red en Defensa de la Humanidad (Rede em Defesa da Humanidade). Reitor da Universidade das Artes

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