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Do esperanto aos BRICS

Os BRICS são a melhor expressão da reacção global à tentativa de submeter a humanidade à hegemonia mundial dos rituais tribais dos EUA.

Em certa medida, os aspectos monetários da situação em que os BRICS se encontram podem ser considerados o análogo económico dos problemas inerentes ao domínio do inglês na noosfera. Embora não redutíveis a questões de semiótica, os temas monetários contêm aspectos directamente relacionados com a informação. As trocas não são apenas uma questão de uso de signos, mas são também irrevogavelmente isso.


A humanidade poderia ter evoluído linguisticamente de várias maneiras. Apenas os esforços deliberados, após a Segunda Guerra Mundial, visando a formação de uma forma simplificada do inglês, permitiram o domínio global desta língua, que nas últimas décadas se tornou verdadeiramente a língua franca da espécie humana. Mesmo com o domínio económico dos EUA no imediato pós-guerra, e com o império britânico ainda de pé, não estava de modo algum “escrito nas estrelas” que a evolução linguística se tornaria o que realmente foi. Foi necessário juntar a isto a competição com a União Soviética, bem como a grande vaga de descolonização, para que o conflito geopolítico se tornasse também, de forma crucial, uma guerra cultural, uma disputa pelos “corações e mentes” de praticamente toda a gente e em todo o lado; e para que o inglês, em resultado disso, “tivesse” de se generalizar à medida que ocorria.


Do ponto de vista da administração do super-império anglo-saxónico, isto é, do conglomerado formado pelo Reino Unido e pelos EUA, ou melhor, daquilo a que Niall Ferguson chamou “Colosso”, sempre foi um problema, por exemplo, saber até que ponto as autoridades imperiais se deviam empenhar na expansão do protestantismo para sul, nas Américas e não só. É esta a tese de Ferguson: supostamente, o chamado Colosso, mais cedo ou mais tarde, teria de arregaçar as mangas e assegurar a expansão para sul das crenças protestantes. Devo dizer que esta ideia me pareceu estranha e excessiva quando a vi formulada pela primeira vez, mas a verdade é que, considerando, por exemplo, a expansão e a crescente importância política do evangelismo político no Brasil, creio que agora é melhor permanecer agnóstico sobre o assunto.

Para falar inglês mais alto

Os aspectos religiosos, em todo o caso, são talvez de uma importância relativamente secundária; pelo menos, se comparados com os idiomáticos. E, para além disso, a Igreja Católica tem já uma grande tradição de compatibilizar a sua agenda com o domínio das potências protestantes, como o demonstra claramente o alinhamento do Vaticano com o Terceiro Reich; e, depois de 1945, também com os EUA, apesar da inclinação marcadamente WASP deste último. Por outro lado, a história das relações de potências como, por exemplo, Portugal e o Reino Unido, ilustra bem como a potência superior protestante pode perfeitamente optar por deixar os “nativos” continuarem com a sua tradição religiosa, desde que se mantenham complacentes nos aspectos verdadeiramente relevantes: económicos e, sobretudo, militares.


No entanto, se os aspectos religiosos parecem, assim, ser uma questão de dúvida razoável, quanto às questões linguísticas, a atitude agressiva da potência hegemónica norte-americana é inegável. A hegemonia norte-americana é, pelo menos neste aspecto, muito mais exigente em termos de envolvimento activo e empenho efectivo dos “nativos” do que alguma vez foi a britânica. Muito mais do que os britânicos, os norte-americanos tentaram, pelo menos desde 1945, “falar inglês mais alto” como forma de se certificarem de que toda a gente os compreendia; e de se certificarem de que os “nativos” também eram capazes de responder. Neste aspecto, foram fundamentalmente vitoriosos.


A utilização do inglês como língua franca da humanidade deixa essa língua, ou mais precisamente os seus falantes, numa posição evidente de “free riders”, isto é, de beneficiários de um acordo de cooperação que obriga os outros cooperantes a um custo, mas não a eles, que são, no entanto, os principais beneficiários do processo, como muito bem observou Philippe Van Parijs. O problema é que este compromisso, do qual os anglófonos beneficiam sem suportar quaisquer custos, significa também um ganho muito significativo para todos os outros. A alternativa é, como se pode facilmente constatar, por exemplo, nas cimeiras dos BRICS, um recurso tremendamente pesado a serviços de tradução permanentes e omnipresentes, todos eles meramente bidireccionais; e que acabam inevitavelmente por prejudicar e (em maior ou menor grau) trair e empobrecer o conteúdo das próprias ideias transmitidas. Pode dizer-se que esta é uma ilustração perfeita do “problema de Babel”.


Da mesma forma, na União Europeia, todas as línguas dos Estados membros são também formalmente línguas oficiais - mas a quem interessa, por exemplo, as traduções do irlandês para o estónio, ou vice-versa? A verdade é que, embora não oficialmente, e mesmo com o Brexit, o inglês já é a língua da UE. E isto, note-se, apesar do peso dos alemães e dos franceses, ambos em condições de poderem disputar a posição dominante - ou, pelo menos, de a dividirem, podendo a UE tender, assim, a tornar-se, de facto, idiomaticamente franco-alemã. Mas é óbvio que não foi assim. A língua franca acabou por ser, inequivocamente, a língua anglo-saxónica.

Os aspectos religiosos, em todo o caso, são talvez de uma importância relativamente secundária; pelo menos, se comparados com os idiomáticos. E, para além disso, a Igreja Católica tem já uma grande tradição de compatibilizar a sua agenda com o domínio das potências protestantes, como o demonstra claramente o alinhamento do Vaticano com o Terceiro Reich; e, depois de 1945, também com os EUA, apesar da inclinação marcadamente WASP deste último. Por outro lado, a história das relações de potências como, por exemplo, Portugal e o Reino Unido, ilustra bem como a potência superior protestante pode perfeitamente optar por deixar os “nativos” continuarem com a sua tradição religiosa, desde que se mantenham complacentes nos aspectos verdadeiramente relevantes: económicos e, sobretudo, militares.


No entanto, se os aspectos religiosos parecem, assim, ser uma questão de dúvida razoável, quanto às questões linguísticas, a atitude agressiva da potência hegemónica norte-americana é inegável. A hegemonia norte-americana é, pelo menos neste aspeto, muito mais exigente em termos de envolvimento activo e empenho efectivo dos “nativos” do que alguma vez foi a britânica. Muito mais do que os britânicos, os norte-americanos tentaram, pelo menos desde 1945, “falar inglês mais alto” como forma de se certificarem de que toda a gente os compreendia; e de se certificarem de que os “nativos” também eram capazes de responder. Neste aspeto, foram fundamentalmente vitoriosos.


A utilização do inglês como língua franca da humanidade deixa essa língua, ou mais precisamente os seus falantes, numa posição evidente de “free riders”, isto é, de beneficiários de um acordo de cooperação que obriga os outros cooperantes a um custo, mas não a eles, que são, no entanto, os principais beneficiários do processo, como muito bem observou Philippe Van Parijs. O problema é que este compromisso, do qual os anglófonos beneficiam sem suportar quaisquer custos, significa também um ganho muito significativo para todos os outros. A alternativa é, como se pode facilmente constatar, por exemplo, nas cimeiras dos BRICS, um recurso tremendamente pesado a serviços de tradução permanentes e omnipresentes, todos eles meramente bidireccionais; e que acabam inevitavelmente por prejudicar e (em maior ou menor grau) trair e empobrecer o conteúdo das próprias ideias transmitidas. Pode dizer-se que esta é uma ilustração perfeita do “problema de Babel”.


Da mesma forma, na União Europeia, todas as línguas dos Estados membros são também formalmente línguas oficiais - mas a quem interessa, por exemplo, as traduções do irlandês para o estónio, ou vice-versa? A verdade é que, embora não oficialmente, e mesmo com o Brexit, o inglês já é a língua da UE. E isto, note-se, apesar do peso dos alemães e dos franceses, ambos em condições de poderem disputar a posição dominante - ou, pelo menos, de a dividirem, podendo a UE tender, assim, a tornar-se, de facto, idiomaticamente franco-alemã. Mas é óbvio que não foi assim. A língua franca acabou por ser, inequivocamente, a língua anglo-saxónica.

Tinha de ser assim? Tenho algumas dúvidas. Quanto a alguns aspectos, nomeadamente os académicos, a língua transeuropeia de comunicação poderia ter sido, por exemplo, o latim sem declinações, criado na viragem do século XIX para o século XX por Giuseppe Peano. Mas a nova língua proposta pelo clérigo piemontês enfrentou sempre a concorrência tanto do latim propriamente dito, que até ao início do século XX permaneceu em muitos países como língua obrigatória das dissertações de doutoramento, como do francês, com uma posição muito invejável até muito mais tarde, nomeadamente através da diplomacia. As más relações que, de um modo geral, prevaleciam entre a Itália e a França também desempenharam, sem dúvida, um papel nesta história. A verdade, em todo o caso, é que o latim sem declinações foi um fracasso total. E, no entanto, é fácil imaginar que, se tivesse havido um poder político empenhado em promovê-lo, e apoiado, por outro lado, tanto pelo prestígio residual do latim, como pela maior proximidade linguística de uma boa parte dos povos da Europa, a língua de Peano poderia muito bem ter conseguido ocupar uma posição académica que nem mesmo o inglês, ainda hoje, poderia contestar.

O registo deste fracasso levanta algumas questões. Será viável uma língua franca meramente erudita, sem a transpor para outros níveis, nomeadamente o das transacções económicas? Ou será que a língua comum dos académicos tem de ser, em sociedades de incontida inclinação democrática, um mero reflexo da que predomina na economia? E quanto à tradução disto em fenómenos monetários, se é que isso é legítimo: a humanidade beneficia certamente, em certa medida, da existência de uma linguagem monetária comum, como a que se expressa no dólar americano. Mas só isso dá aos Estados Unidos uma vantagem considerável sobre todos os outros países. E, embora se possa argumentar que a utilização de uma moeda politicamente apoiada, mas não apoiada por metais preciosos, pode representar uma libertação das transacções mundiais das vicissitudes técnicas potencialmente associadas à obtenção de qualquer metal, por outro lado, os benefícios dessa libertação tendem a ser marcadamente assimétricos - a favor, claro, dos EUA.

Daqui até ao "privilégio exorbitante", como lhe chamou outra personalidade francófona, muito mais famosa do que Van Parijs, é provavelmente uma distância muito curta. O fim da convertibilidade do dólar em ouro deixou a moeda americana na posição daquilo a que Karl Marx chamava a "forma equivalente", isto é, como a encarnação imediata do valor, enquanto todas as outras moedas foram relegadas para a posição subalterna de "forma relativa": o seu valor tem necessariamente de ser reconhecido através da sua transmutação nele. Mas, como se tudo isto não bastasse, houve também (a cereja no topo do bolo dos abusos) a tendência para o armamento directo do dólar, com a proliferação das chamadas "sanções", ou seja, os abusos permanentes da sua posição dominante por parte dos EUA, visando violenta e grosseiramente "manter na linha" todos aqueles que de alguma forma ousassem desafiar o seu domínio.

Esperanto e outras grandes expectativas

No que diz respeito aos temas linguísticos, é também necessário mencionar o Esperanto. Surgido no início do século XX, moveu-se frequentemente na vizinhança da chamada "teosofia" e de ideias como o vegetarianismo, a não-violência erigida em suposto método de acção política, e remetendo directamente para nomes muito famosos, Tolstoi e Gandhi sobretudo - e secundariamente reportando-se também, muito mais perto de nós e em versão "low culture", ao movimento hippie e ao flower power, a John Lennon com o seu famoso "and the world will be one". De um modo geral, apelava a um projecto de um pan-humanismo transformado numa religiosidade expurgada de particularismos, mas que sabia reter o elemento irredutivelmente religioso da experiência humana, isto é, tomando o homo sapiens como um homo religiosus. Neste contexto, foi também, naturalmente, um apoio ao ideal da paz universal.

Tudo isto, como é sabido, teve numerosas derivas e sofreu explorações imensamente abusivas, algumas delas verdadeiramente abomináveis. Mas há que reconhecer que uma língua totalmente artificial, criada de raiz, como o Esperanto, estava talvez condenada ao fracasso desde o início. Também a simples religiosidade pan-humana, à maneira da "teofilantropia", ou com a "religião da humanidade" de Augusto Comte, nunca passou de mais uma falsa partida. E sim, para resumir, projectos ainda mais recentes acabaram por desaguar em grande parte também nas águas do actual "globalismo" político; na verdade, a defesa do "domínio de espectro total" dos EUA, embora isso represente também a perversão completa de muitas das ideias iniciais.

É muito natural, e muito salutar, a existência de uma reacção ao chamado projecto de "full spectrum dominance" dos EUA, que na verdade configura não uma ideologia universalista, mas apenas um conjunto de particularismos dos EUA. Este aspecto deve ser realçado, porque muitas vezes até os próprios opositores ao "full spectrum dominance" se referem candidamente a ele como globalismo ou universalismo, quando na verdade tal ideia é o oposto disso. Pelo contrário, trata-se de libertar toda a humanidade não só da dominação dos EUA, mas sobretudo das patranhas correspondentes, ou seja, do conjunto correlativo de superstições: políticas e outras.

Os EUA são já hoje, e como bem ilustra o seu ritual cíclico (ou forma muito elementar de vida religiosa) a que chamam "eleições", uma sociedade incapaz de transmitir ao resto do mundo qualquer elemento intelectual ou moral genuinamente interessante. Em vez disso, parece ser capaz apenas de exportar ou inspirar um culto da violência, o domínio das pulsões primárias, a grosseria e querelas abismalmente idiotas - como a que está associada à suposta guerra cultural entre as ideias "acordadas" e as "anti-acordadas". Quarenta e cinco anos depois, é como se tivéssemos ficado todos congelados naquilo a que os Monty Python já se referiam em 1979 (ano da eleição de Thatcher) através de uma mera tirada humorística. Desde então, porém, o Ocidente perdeu todo o seu sentido de humor; e recuou manifestamente em inteligência e discernimento. A humanidade merece, em suma, melhores perspectivas intelectuais e morais do que as representadas por este deserto.

Os BRICS são, talvez, a melhor expressão desta reacção global à tentativa de submeter a humanidade ao domínio material dos EUA e à hegemonia mundial dos rituais tribais norte-americanos. É inegável que eles contêm muito mais elementos criativos do que destructivos. Podemos dizer que, com todo o seu reconhecimento enfático da diversidade e dos particularismos, aí reside (contraditória, mas complementarmente) o traço mais genuinamente universalista da história mundial das últimas décadas.

No entanto, é impossível assistir a esta lenta emergência e não sentir a urgência de perguntar: e depois, o quê? Em vez de uma unidade de conta comum, por exemplo... apenas a promoção de relações comerciais bilaterais? Uma moeda apoiada em metais ou outras mercadorias, ou apenas um agregado das moedas nacionais existentes? Talvez uma moeda comum, ou monnaie commune, como Jacques Sapir escreveu uma vez sobre o antigo ECU europeu, em oposição à moeda única, ou monnaie unique?

Tudo isto deixa, obviamente, muitas questões em aberto. Por exemplo, uma unidade de conta alternativa ao dólar americano será uma entidade não apoiada por nenhum poder soberano. Para não reproduzir, em maior escala, a aberração superlativa que é hoje o Euro, terá de ter sempre o cuidado de ser "comum", sim, mas sem pretender ser "único"; de ser adequadamente mercurial, sabendo sempre retirar-se a tempo, mas reaparecendo também quando for realmente necessário construir pontes; de ser suficientemente independente das tecnicalidades potencialmente associadas à produção de qualquer material físico, mas abstendo-se de usos abusivos, nomeadamente aqueles que só a soberania permite, e a que só os poderes soberanos podem recorrer.

E os aspectos idiomáticos? A diversidade linguística da espécie humana é, sem dúvida, um tesouro inestimável. Mas as necessidades de comunicação universal não desaparecem, infelizmente, em virtude deste reconhecimento. Serve de consolo pensar que o inglês também pode ser usado para combater a hegemonia dos Estados Unidos (como é, por exemplo, a minha intenção ao escrever este texto)? Talvez esta constatação possa ajudar a compreender o que está para vir. O inglês como língua comum, embora não seja a única língua? O triunfo do inglês nessa qualidade, mesmo como arma indispensável para a construção de uma grande coligação contra-hegemónica? Será esta uma das muitas ironias da história universal a emergir nas próximas décadas? Penso que é importante, pelo menos, considerar esta eventualidade, com todos os problemas que lhe podem estar associados, mas também com todas as potencialidades correspondentes.

Fonte:

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Autor: João Carlos Graça

João Carlos Graça, Professor de Sociologia no ISEG, Universidade de Lisboa.

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