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O triunfo do multipolarismo significa o fim da geopolítica clássica?

A geopolítica do mundo multipolar é perigosa, porque nos faz pensar no que vivemos hoje sob uma nova luz. E oferece-nos uma forma de o concretizar.

Na transição para um mundo multipolar, colocam-se várias questões ao nível da teoria, entre as quais uma das principais: o triunfo do multipolarismo põe ou não fim à geopolítica clássica?


O pai da teoria do mundo multipolar, o filósofo russo Aleksandr Dugin, não formulou correcta e completamente uma resposta a esta questão na primeira fase da composição teórica, uma vez que era prematuro, na altura, raciocinar sobre os cenários de sucesso da teoria. Hoje, no entanto, é urgentemente necessária uma resposta.


Comecemos pelos fundamentos. A geopolítica clássica, codificada entre o final do século XIX e o início do século XX, vê nas palavras do Almirante Halford Mackinder um dos seus axiomas definidores, que ditou inquestionavelmente a lei até aos dias de hoje: "A Eurásia é o Heartland. Quem controla o Heartland, controla o mundo". Em torno deste eixo geográfico da história, inscreveu-se toda a geopolítica que conhecemos. Actualmente, o conceito que tem todas as consequências científicas no contexto da transformação da geopolítica clássica para a geopolítica do mundo multipolar é o de Heartland distribuído, ou distribuído, se preferir. Só assim podemos olhar para a estrutura semântica da geopolítica clássica com o dualismo essencial entre a Civilização do Mar (também no sentido do Proclus de Platão, onde ele descreve a antiga civilização da Atlântida, definida como "a pior" da História) e a Civilização da Terra, que é preservada, permanece presente, e todas as implicações e elaborações que vêm dos estudos de Carl Schmitt sobre as duas civilizações. A geopolítica clássica opera com duas projecções destes princípios na geografia e na história do mundo, identificando a forma como serão incorporados e manifestados nas grandes potências mundiais.

Mantemos, portanto, esta interpretação dos dois tipos de civilizações. O dualismo já defendido pelo filósofo grego Proclus é plenamente confirmado por Mackinder, que sublinha este dualismo como sendo constituído por princípios permanentes, dois factores no desenvolvimento das civilizações da humanidade e que podem ser identificados ao longo da história humana: atracção pelo tempo, pela materialidade, pelo efémero; atracção pela verticalidade, pelo espírito, pelos valores estáveis. É interessante o facto de a água do mar não poder ser bebida, pois é tóxica para o ser humano, pelo que a água do mar é, de certa forma, a morte, enquanto a água doce, terrestre, é a água da vida. Esta dualidade "exclusiva" entre dois pontos de atracção histórico-geográficos está no centro da geopolítica clássica. Os conflitos que vivemos inscrevem-se perfeitamente na leitura dualista acima referida. A geopolítica clássica também encontra a sua validade no contexto actual, se pensarmos em conflitos bem conhecidos, como o russo-ucraniano, que sabemos ser um choque de civilizações entre o Ocidente e a Rússia, ou o israelo-palestiniano. Não se pode dizer que a geopolítica clássica está ultrapassada, porque as suas leis continuam a funcionar em pleno hoje em dia e, por isso, ainda se pode utilizá-la como metodologia interpretativa. No entanto, resta uma questão: será que se pode ir mais longe?


Podemos observar com serena objectividade que o Heartland clássico, a Eurásia, já não é suficiente como pólo de contrapeso contra a Civilização do Mar. Consideremos, portanto, duas formas de geopolítica pós-clássica, a geopolítica de hoje: a geopolítica unipolar, que afirma a ausência de dualismo e o triunfo da civilização talassocrática, tal como descrita por Francis Fukuyama, Yuval Noah Harari, Clauss Schwab, os democratas americanos partidários deste mundo unipolar ou, em alguns casos, a-polar, que prevê a anulação absoluta da Civilização da Terra, mesmo enquanto conceito. Esta primeira forma de geopolítica pós-clássica podemos baptizá-la de pós-polarismo, perfeitamente em sintonia com a pós-modernidade, e esta é a geopolítica "dogmática" contemporânea (no sentido talassocrático, evidentemente), nasceu de pensadores mergulhados na geopolítica talassocrática clássica e não admite divergências.

Lendo os acontecimentos actuais com esta lente, é claro como a Rússia está hoje a travar a "guerra do passado" para abrir o mundo ao futuro: é a última guerra geopolítica do passado, a última travada de acordo com os axiomas mackinderianos; o que vem a seguir será "outro", diferente, ambiciosamente multipolar. Note-se bem: A Rússia actual, após a catástrofe dos anos 90, já não dispõe dos recursos necessários para se afirmar sozinha como potência mundial em concorrência com a civilização unipolar do Ocidente. A Eurásia já não é suficiente por si só: falta-lhe estabilidade demográfica e económica, o que obriga os russos que lutam pela geopolítica clássica tradicional a lutar com novas normas, a traçar rotas diferentes e a explorar territórios desconhecidos. A Rússia precisa de aliados e parceiros para cumprir esta missão histórica. Numa perspectiva mais metafísica, os russos são os portadores da última vontade sagrada telurocrática, lutando pela eternidade sobre a temporalidade.

Imaginando a vitória da Rússia nesta última guerra da geopolítica clássica, a extensão da ideia russa a todo o mundo não é agradável, porque a Rússia não tem uma ideologia universal - que os americanos têm, como a ideologia dos direitos humanos, do genderismo, etc. - que possa atrair as elites do mundo. - que possa atrair as elites e os povos do mundo. Neste sentido, a Rússia é demasiado pequena. Pode salvar-se como "pequena Eurásia", limitada à própria Rússia, mas isso não será decisivo porque é uma luta defensiva, não ofensiva, e a longo prazo não compensa. Daí que surja a multipolaridade: se não podemos aceitar o domínio talassocrático e não podemos propor a Eurásia como uma ideia universal, então temos de passar à multipolaridade. A grande China, a Índia em ascensão, a África emancipada do Ocidente europeu são exemplos de independência e devemos excluir em absoluto qualquer plano de ingerência russa, mesmo que seja apenas conceptual. A Rússia tem uma visão imperial (num sentido completamente diferente do passado), mas não uma visão global. Nem sequer em teoria é permitido imaginar os outros pólos como subservientes ao poder russo.

É aqui que nasce efectivamente a geopolítica do mundo multipolar, onde nasce uma alternativa. O Ocidente continua a ser um (macro)pólo com a sua validade marítima, com o globalismo como ideologia; todo o anti-globalismo é uma continuação e transfiguração da Civilização da Terra: o Heartland distribui-se por vários pólos, transforma-se e readapta-se, com uma multiplicidade de facetas. Esta pluralização operacional representa uma transformação decisiva que já está em curso.

Nas eleições americanas de 2016, viu-se claramente este "desmembramento", pelo menos aparente, do macro-pólo chamado Ocidente: as costas (Costa Leste e Costa Oeste) votaram nos democratas, os estados territorialmente centrais votaram nos republicanos. Esta "geopolítica interna" alterou em grande medida a sorte do hegemon estrelado. Há uma espécie de Heartland interno na América que está a tomar forma, pelo que os EUA já não podem ser considerados como uma civilização marítima única. Este é um ponto absolutamente decisivo. Há uma espécie de civilização do coração dentro da civilização do mar. Temos de começar a escrever uma história do Heartland americano. É interessante que, no artigo de referência de Mackinder sobre o Eixo Geográfico da História, ele tenha falado dos EUA como uma civilização telurocrática, de forma muito semelhante à da Rússia, o que indica que houve uma mudança radical, temporalmente ocorrida após a proclamação dos 14 Princípios pelo então Presidente Woodrow Wilson. Foram esses pontos que redefiniram a posição da América em relação à talassocracia.

Podemos também imaginar que a Rússia não é totalmente terrestre: existe uma elite talassocrática no seio da Rússia, como os governantes dos anos 90, empresários liberais de tipo ocidental, muitas pessoas que emigraram aquando do colapso da URSS e que depois regressaram como senhores do capitalismo liberal. É por isso que a Civilização do Mar e a Civilização da Terra se tornam princípios identificáveis em todas as civilizações.

Hoje podemos falar, para dar mais alguns exemplos, do Heartland da China, apresentado com Xi Jinping, que é profundamente telurocrático, mas que tem um enorme poder marítimo comercial, logo uma extensão marítima, apesar de a China não ser historicamente uma potência marítima. O mesmo se passa com Nerendra Modi, que quer propor uma Índia independente e "descolonizada em consciência", e isto é um Heartland, mas ao mesmo tempo a Índia tem uma forte atracção marítima que a faz tender para o globalismo, com alianças com os EUA, o Reino Unido, o Japão, como já foi narrado no século XX. O mundo islâmico é também composto por países mais terrestres, como o Irão, e por outros países que se integram de forma requintada no globalismo internacional, como os "príncipes do petróleo" da Península Arábica e não só. Também em África, muitas forças promovem um pan-africanismo que é a afirmação de um Heartland africano, uma autêntica civilização da terra, enquanto outros governantes querem fazer parte do projecto ocidental que os fascina e seduz. Na Ibero-América, passa-se a mesma coisa: os países estão a fazer força para uma integração da Terra, enquanto outros governantes são desapaixonadamente atlantistas. Teoricamente, o mesmo está a acontecer na Europa, hoje totalmente sob controlo atlantista: veja-se o populismo de direita que alardeou - e continua a alardear - uma abertura multipolar, mas partindo de premissas erradas, de tal forma que ganhou bastante poder político apenas para trair pontualmente a representação popular, confirmando que num território militar, política, económica e culturalmente ocupado por uma potência estrangeira (os EUA), a preservação do poder não é possível sem a intervenção do Mar. A Europa não pode nem deve ser subserviente a outros pólos ou civilizações, mas de facto é ao pólo atlantista; há uma Europa teórica, que existe virtualmente e tem uma grande História, que hoje está numa fase "escondida" e nada tem a ver com a Rússia. A Rússia, no entanto, luta hoje pela multipolaridade, o que representa uma oportunidade para a Europa renascer. A única Europa possível é uma Europa independente, livre de qualquer tipo de poder externo, autónoma e geopoliticamente para si própria. Finalmente, o Heartland americano vê na luta eleitoral, hoje representada pelo desafio entre Joe Biden e Donald Trump, uma paráfrase do confronto geopolítico interno entre Terra e Mar. É o fim da luta geopolítica clássica.

Ouvimos o apelo a uma geopolítica revolucionária, não só académica, mas também feita de uma militância que é uma luta contra a ditadura do unipolarismo e do pós-polarismo.

A geopolítica do mundo multipolar, por outro lado, é perigosa, porque nos faz considerar o que vivemos hoje sob uma nova luz. E oferece-nos uma forma de o concretizar.

Fonte:

Autor: Lorenzo Maria Pacini

Lorenzo Maria Pacini - Professor Associado de Filosofia Política e Geopolítica, UniDolomiti de Belluno, Consultor em Análise Estratégica, Inteligência e Relações Internacionais

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