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Os valores europeus e o poder de perdoar os terroristas

O que está em jogo não é mais do que a luta entre o capitalismo rentista e financeirizado e os ganhos brutais que ele proporciona a um punhado cada vez mais rico e pequeno, que precisa de um mundo sem outras limitações para além das que ele próprio impõe.

Ao longo de 2024, todos nós ouvimos a expressão “valores europeus” ser utilizada inúmeras vezes por von der Leyen, Borrel, Kaja Kallas e, agora, António Costa como arma de arremesso contra os adversários e como uma suposta muralha civilizacional contra os inimigos eleitos. Valores como a “promoção da paz” ou a “solidariedade e respeito mútuo entre os povos” passaram a coexistir com uma lógica de confrontação, em que o nível de fanatismo com que esses valores são esgrimidos contra os outros se tornou o principal elemento de avaliação e desempenho e o garante da promoção individual na cadeia de poder.


A utilização destes “valores europeus” como factor de divisão entre campos supostamente antagónicos é talvez a maior falácia da invocação desses mesmos valores. Invocar esses valores como muro divisório das relações entre os povos significa hoje o mesmo que a “salvação das almas” significou para a era expansionista das nações ibéricas, nos alvores da era mercantilista, ou, como a “democracia e os direitos humanos” significam para os EUA, sempre que pretendem constituir uma justificação diferencial para uma determinada intervenção além fronteiras.


Todas as civilizações expansionistas, e não apenas as ocidentais, utilizaram os chamados “valores”, que consideravam primordiais, como justificação para a sua expansão e para a divisão entre si e os outros. No entanto, esses valores podem ter expressado a ideia contrária, mesmo que a sua utilização nestes termos nunca tenha sido um obstáculo a qualquer conquista, expansão ou intervenção. Tal como Israel utiliza a sua segurança para oprimir os povos palestiniano, sírio ou libanês, negando-lhes a segurança a que se considera com direito. Portanto, nada de novo aqui. O que é novo, porém, é que a Europa, um continente que foi destruído duas vezes nos últimos 110 anos, pense que é altura de voltar a invocar a mesma lógica de confronto.


Estas justificações supostamente ideológicas contradizem geralmente os próprios conceitos em que se baseiam. Mais uma vez, isto não é exclusivo da União Europeia. Talvez o mais questionável seja a frequência com que o Ocidente usa repetidamente tais pretextos, arrogando-se uma espécie de superioridade universal que torna o seu julgamento supostamente superior ao dos outros. Esta exclusividade, este excepcionalismo, o poder absoluto de perdoar ou condenar, de dividir ou unir, é historicamente reconhecido como o poder que corrompe, que cega.


Mas o que são estes “valores europeus”? Estes valores encontram apoio jurídico nos artigos 2º e 3º do Tratado de Lisboa e na Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia. A União Europeia baseia-se na “dignidade humana, na liberdade, na democracia, na igualdade, no Estado de direito e nos direitos do Homem”. De um ponto de vista mais territorial, as “sociedades” europeias assentam no “pluralismo, na não discriminação, na tolerância, na justiça, na solidariedade e na igualdade entre homens e mulheres”. Todos estes são valores nobres, embora encontremos inúmeras situações em que não foram tidos em conta, quer no tratamento dos próprios europeus, quer no tratamento de outros povos.

Vejamos o caso da Síria. Para algumas nações europeias, Bashar Al-Assad passou de um visionário “reformista” a um tirano inveterado. A França de Chirac foi a primeira a dar o mote, atribuindo-lhe a Grã-Cruz da Legião Francesa, seguida de outras condecorações de países como a Ucrânia (2002), a Finlândia (2009) ou a Itália (2010). Símbolo do secularismo e figura de proa do mundo árabe (em 2009 venceu a votação da CNN Árabe para “Personalidade do Ano” e em 2010 ficou apenas atrás de Erdogan), Bashar Al-Assad tinha como áreas de governo mais valorizadas a economia, a estabilidade, a política externa e os direitos das mulheres.


Hoje, quando vemos a foto de Annalena Baerbock e de outras mulheres ao lado de Al-Jolani e de outros “novos” políticos sírios ser borrada pela imprensa ligada ao novo regime do HTS, podemos ver a flexibilidade e o paradoxo com que os “valores europeus” são invocados. Se no caso de Assad, permitiram elevá-lo e depois condená-lo, no caso de Al-Jolani, os mesmos “valores europeus” permitiram reabilitar um “terrorista reformado” num “radical pragmático”, elevando-o a um estatuto tal que toda a União Europeia correu para a Síria para abençoar alguém que tem a cabeça a prémio por 10 milhões de dólares. O êxodo de personalidades europeias para a Síria de Al-Jolani também diz muito sobre o papel que essas pessoas desempenham na política actual, reduzida a um papel de figurantes aleatórios que passam a mensagem, ao mundo se possível, de que os EUA estão agora em paz com a Síria. Até agora, pelo menos. Mais uma vez, os mesmos valores que reabilitam Al-Jolani serão facilmente utilizados para o condenar e, nessa altura, o êxodo de figuras irrelevantes do mainstream ocidental esgotar-se-á e começará um êxodo de tanques Merkava e F35.


O facto é que, conhecendo a história deste ex-terrorista profissional, a sua passagem pela Al-Qaeda, Al-Nusra e outras organizações terroristas, é incrível que, sob os “valores europeus” da “dignidade humana, liberdade, democracia, igualdade, Estado de direito e direitos humanos”, cujas “sociedades” europeias se baseiam supostamente no “pluralismo, não discriminação, tolerância, justiça, solidariedade e igualdade entre homens e mulheres”, seja possível reabilitar alguém que, ontem, praticou os actos mais violentos e gratuitos contra pessoas inocentes.


Sabendo que o terrorismo, pelo menos em teoria - e parece que só em teoria -, é a forma mais grave de violência contra o ser humano; sabendo também que, segundo a teoria oficial do atentado terrorista de 11 de Setembro de 2001, a Al-Qaeda foi a organização por detrás da sua preparação; é razão suficiente para perguntar como é possível essa reabilitação. Afinal, que crime cometeu Bashar Al-Assad que tornou impossível a sua reabilitação? Já sabemos que não foi a alegada tortura - isso também aconteceu em Guantánamo; nem foram os alegadamente famosos “ataques químicos”, porque a Al-Qaeda, o ISIS e a Al-Nusra têm no seu repertório crimes ainda mais bárbaros; nem foi o alegado desrespeito pelos valores democráticos, porque, afinal, na Ucrânia, as eleições foram suspensas por tempo indeterminado e os EUA são peritos em subverter a democracia. Os EUA são peritos em subverter os resultados eleitorais sempre que estes não lhes convêm, como é o caso da Geórgia, Venezuela, Nicarágua, Roménia, etc. Correndo o risco de ser apelidado de “assadista”, o que é que o homem fez?


É no discurso de Al-Jolani que encontramos a resposta à pergunta sobre os crimes mais terríveis que um ser humano pode cometer aos olhos do Ocidente. O jihadista “retirado” não considera a “sua” Síria uma ameaça para o mundo, sobretudo ao escolher os Estados Unidos e Israel como inimigos. Não deixa de ser contraditório que estes jihadistas ultra-radicais, como Al-Jolani, que invocam com tanta veemência o Corão quando se trata de oprimir as mulheres, nunca tenham desenvolvido qualquer ataque contra aquele que é o maior inimigo do mundo árabe e muçulmano: Israel.


Veremos como Al-Jolani lidará com a economia nacional síria, mas a manutenção do estatuto de imunidade imperial que lhe foi concedido pelos EUA, G7, NATO e UE depende de um outro factor, não menos importante do que os acima referidos: até que ponto o regime liderado pelo HTS permitirá que os vastos recursos naturais sírios sejam entregues às multinacionais ocidentais. Afinal, a defesa da soberania e da independência da nação síria foi outro dos pontos de honra do regime liderado por Bashar Al-Assad. A insistência em defender a soberania nacional, e impedir a apropriação das reservas de petróleo e gás pelas multinacionais ocidentais, levou os EUA a usar o pretexto de combater o ISIS para ocupar a parte do país mais rica em hidrocarbonetos, há 10 anos. E assim ficamos a conhecer o único crime que é considerado inaceitável aos olhos dos “valores europeus”: a defesa da soberania nacional.

Num mundo em que a criminalidade violenta invade as nossas vidas através dos principais meios de comunicação social e em que são despertados sentimentos de vingança, geralmente contra minorias étnicas, esta reabilitação pelo Ocidente de todo um movimento terrorista é igualmente grave: imaginem se os governos ocidentais começassem a reabilitar os criminosos mais perigosos só porque prometeram tornar-se rapazes bem comportados e cumpridores das regras? Qual seria a reacção da opinião pública ocidental se os seus governos começassem a conceder perdões aos maiores criminosos, simplesmente porque eles disseram “estamos arrependidos, reformados e fora do crime” e “agora vamos cumprir as regras”. Será que este comportamento é aceitável?


E o povo sírio? É plausível que o povo sírio prefira ver a sua nação destruída a ser governada por alguém como Assad? E as mulheres sírias? Prefeririam viver num Estado autoritário que as respeitasse como mulheres ou num Estado que as afastasse da vida pública?


Ao permitir que o país seja governado “a partir do exterior”, surge a ligação entre a Síria de hoje e os pretensos “valores europeus”, devidamente manobrados por Von Der Leyen, Sholz e outros, ao sabor das suas ordens. Já vimos que, no que diz respeito aos “valores europeus” de natureza individual, seria impossível reabilitar alguém como Al-Jolani - o anterior desrespeito pela vida humana, pelas mulheres, a indignidade dos seus actos, a injustiça que lhes é imanente, a ausência de pluralismo, de liberdade e de observância da igualdade de género para com o povo sírio, tornam a sua atitude incompatível com tais valores. Só num Ocidente que considera os seus actos como algo de divino, com o poder de perdoar e condenar, é que tal reabilitação seria possível, e sempre na lógica do perdão injusto. Injusto para as vítimas, sobretudo.


Mas, no artigo 3º do Tratado de Lisboa, entre a lista de princípios e valores que contém, desde o funcionamento interno da UE até às suas relações com o mundo, encontramos a resposta à reabilitação de Al-Jolani. As políticas soberanas defendidas por Calin Georgescu, Robert Fitzo, Bashar Al-Assad, Vladimir Putin, Nicolas Maduro, Ibrahim Traoré (será que Al-Jolani chegou ao poder através de eleições?), por países como Moçambique, Irão, Geórgia, Nicarágua, Coreia do Norte, Cuba, Líbia de Kadhafi ou Hungria de Orban, à esquerda ou à direita do espectro político, mais socialista ou mais capitalista, tais reivindicações são omitidas nos “valores europeus”. A lista de valores, princípios e objectivos que compõem estes “valores europeus” não inclui a independência, a autonomia e o respeito pela soberania dos povos, muito menos dos povos europeus. Toda a arquitectura de poder da UE é a mesma de uma grande federação, em que os Estados são governados a partir do exterior ou por um centro distante, o que facilita o controlo de outros actores externos.


A própria independência, autonomia e soberania da UE estão ausentes. São conceitos que, em última análise, não existem. O orgulho nacional e o patriotismo são vistos como conceitos ultrapassados, emasculantes e subversivos. A UE não é uma construção de povos livres, independentes e soberanos. É uma construção de povos submetidos e passivamente assimilados, governados por um centro de poder chamado Bruxelas.


Assim, perante esta situação, não é de estranhar que a nova Síria se enquadre nesta lógica e que Al-Jolani possa ser reabilitado. Afinal, o que falha num lado da balança, cumpre no outro. É essa a beleza dos “valores europeus”. Num caso, servem para tratar Vladimir Putin como um criminoso, porque está a ser investigado pelo TPI; no outro, servem para desculpar Netanyahu porque, como está a ser investigado pelo TPI, deve ser-lhe dado o benefício da dúvida. Se estar com Vladimir Putin é tóxico, estar com Al-Jolani está na moda e é terapêutico. É o que nos dizem todos os que lá vão hoje em dia. O que importa é saber de quem são os crimes cometidos. Putin terá cometido os seus alegados crimes em nome das pessoas erradas. Em nome das pessoas certas, nem sequer seriam crimes.


Ora, toda a caricatura aqui feita põe em evidência o verdadeiro muro que divide as pessoas e os seus interesses dos interesses dos seus opressores. Não são os “valores europeus” idealistas e etéreos que dividem; estes deveriam unir e unir, em vez de desunir. Desde quando é que a UE deixou de “contribuir para a paz e a segurança” e para o “respeito mútuo entre os povos”, tal como enumerado no artigo 3º do Tratado de Lisboa? No entanto, a enumeração destes princípios é fundamental para a doutrina federativa que criou a própria UE.

Assim, há uma grande divisão e desconexão com os “valores europeus” entre aqueles que defendem a soberania, a independência e a liberdade, porque, sem a primeira, não há liberdade, uma vez que quando somos governados por outros que não escrutinamos, nunca podemos ser livres, tal como não o são aqueles que sucumbem ao globalismo federativo mundial liderado pelos EUA e corporizado pelo G7, pela NATO e pela UE. De que serve derrubar um governo, eleger outro ou revolucionar um país que, no final, terá de continuar a obedecer aos ditames impostos pelo exterior? É por isso que, actualmente, esta é a primeira linha divisória. É a mais visível, a mais palpável. A mais detectável, pelo menos.


Mas não deixemos que isso oculte outra linha divisória, a mais profunda de todas, a mais escondida: a divisão de classes. O que se esconde por detrás desta divisão entre soberania e federalismo são os interesses dos povos trabalhadores, dos pequenos empresários não financiados, das facções do capital produtivo desconcentrado, dos camponeses e dos intelectuais, em oposição aos interesses de classe do capitalismo financiado na sua fase imperialista.


No fundo, o que está em jogo não é mais do que a luta entre o capitalismo rentista e financiado e os ganhos brutais que ele proporciona a um punhado cada vez mais rico e pequeno, que precisa de um mundo sem outras limitações para além das que ele próprio impõe, a que podemos chamar uma “ordem baseada em regras”, em que as regras mudam e são interpretadas ao sabor da vontade do autodesignado “legislador”, sempre em oposição aos interesses dos povos, incluindo as forças produtivas públicas ou privadas, cuja propriedade nacional significa a sua estabilidade, soberania e independência, garantes da sua liberdade e capacidade de utilização dessas forças produtivas instaladas, não em benefício de uma classe rentista central, transnacional e cada vez mais reduzida, mas do interesse soberano e colectivo.


Deste modo, ser soberanista é hoje, como ontem, um ato revolucionário, e não apenas pela clivagem, ruptura e quebra que faz em relação a um processo ainda dominante de supressão das soberanias e liberdades dos povos, mas porque a assupnção dessa soberania implica ela própria uma construção económica soberana, em que: 1) o Estado é detentor da direcção política e democrática, orientando as medidas que garantam o funcionamento da parte em benefício do todo e a defesa do interesse nacional; 2) um Estado detentor dos mecanismos estratégicos que garantam a capacidade dos governos, democraticamente constituídos (numa outra concepção que não me revejo) e democraticamente legitimados (o que não significa através de um modelo liberal), de garantir a aplicação das medidas públicas para as quais são escolhidos; 3) um sistema económico diversificado, incluindo o público, o cooperativo, o privado e o social, que funcione para o todo e incorpore na sua acção o benefício, a sustentabilidade, a estabilidade e a independência da economia nacional, como única forma de garantir a soberania popular na escolha livre do seu caminho.


Uma visão da soberania e do papel que um Estado deve desempenhar para a garantir é uma ruptura efectiva com a tendência federalista e globalista das últimas décadas, responsável por esmagar não só as liberdades como as condições de vida da maioria em benefício de uma ínfima minoria.


Assim, tal como no exemplo da Síria, onde a reabilitação de Al-Jolani depende da submissão da nação aos interesses de Washington e dos seus vassalos, a reabilitação de Vladimir Putin, aos olhos do Ocidente, dependeria da entrega aos interesses rentistas norte-americanos dos 80 biliões de dólares de recursos minerais que a Rússia alberga nas suas terras e que Calin Georgescu tão bem referiu como sendo necessários para pagar a dívida pública e privada do sistema financeiro dominado pelo Ocidente. Entre estas verdades e a proposta de defesa da soberania romena, podem ter estado razões para a anulação precipitada das eleições que ganhou.


Numa Europa que tanto fala de “valores europeus”, vemos apelos ao reforço da segurança enquanto a sua política militar é entregue à NATO; vemos apelos à “segurança energética” enquanto esta é entregue à indústria do gás de xisto dos EUA; ouvimos repetidamente falar da necessidade de garantir a independência das cadeias de abastecimento, mas os Estados europeus servem de intermediários de negócios para os EUA, como aconteceu em Angola com o Corredor do Lobito


Numa Europa que não sabe o que é a independência, a autonomia e a soberania, defendê-las significa que somos automaticamente excluídos desses “valores europeus” e, portanto, do perdão europeu.

Fonte:

Autor:

Hugo Dionísio

Hugo Dionísio é advogado, investigador e analista de geopolítica. É proprietário do Blog Canal-factual.wordpress.com e cofundador da MultipolarTv, um canal de Youtube direccionado para a análise geopolítica. Desenvolve atividade como activista dos Direitos Humanos e dos Direitos Sociais como membro da Direcção da Associação Portuguesa dos Advogados Democráticos. É também investigador da Confederação Geral dos Trabalhadores Portugueses (CGTP-IN).

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