O Iraque está a tirar partido do seu sucesso anterior nas conversações entre a Arábia Saudita e o Irão para mediar uma reconciliação entre a Síria e a Turquia. Mas subsistem obstáculos significativos, incluindo a perspectiva neo-otomana de Erdogan e as próximas eleições nos EUA.
Os recentes desenvolvimentos indicam um potencial degelo nas relações geladas entre Damasco e Ancara, mas um avanço continua incerto.
Apesar das perspectivas sombrias, Bagdade espera reproduzir o seu sucesso anterior na mediação entre adversários. Em Abril de 2021, o Iraque facilitou uma reunião secreta entre os rivais regionais Arábia Saudita e Irão, iniciada pelo príncipe herdeiro saudita Mohammed bin Salman (MbS).
Esse diálogo inicial, liderado pelo conselheiro de segurança nacional iraquiano Qasim al-Araji, acabou por abrir caminho à normalização das relações entre Riade e Teerão, anunciada em Pequim em Março de 2023. O The Cradle também revelou no ano passado que o Iraque tinha acolhido conversações entre representantes do Irão e do Egipto, lideradas pelo primeiro-ministro Muhammad Shia al-Sudani.
Agora, Sudani manifestou a esperança de promover a reconciliação entre a Síria e a Turquia. Numa entrevista ao jornal turco Haberturk, referiu-se às conversações em curso com o Presidente turco Recep Tayyip Erdogan e o Presidente sírio Bashar al-Assad.
Apesar do optimismo de Sudani, o cepticismo persiste. Cinco dias mais tarde, Sudani falou com Assad, mas as declarações oficiais de Bagdade e Damasco não mencionaram qualquer aproximação entre a Síria e a Turquia. No entanto, uma fonte governamental iraquiana citada pela agência noticiosa Shafaq sugeriu que estão a ser envidados esforços para restabelecer as relações, prevendo-se para breve uma reunião mediada pelo Iraque entre representantes de Ancara e Damasco.
Conflitos territoriais e condições políticas
O major-general Abbas Ibrahim, antigo director-geral da Segurança Geral do Líbano, continua a duvidar, citando a ocupação turca do território sírio como um grande obstáculo. Esta reconciliação não terá lugar enquanto houver uma ocupação turca do território sírio", diz ao The Cradle, sublinhando que a Turquia impõe condições políticas para a retirada que a Síria não pode aceitar, porque isso viola a sua soberania.
O escritor libanês Mohammed Noureddine, especialista em assuntos turcos, faz eco deste sentimento, atribuindo a posição de Erdogan a uma "ideologia otomana" que visa recuperar o norte da Síria.
Esta ideia remonta às fronteiras da "Milli Chater" de 1920, que incluía o norte da Síria nas fronteiras aprovadas e traçadas pelo parlamento otomano da altura.
"A presença de Erdogan no poder é um factor decisivo para que não se chegue a uma reconciliação com a Síria", afirma Noureddine.
As perspectivas sombrias dos especialistas não são injustificadas. A 1 de Junho, o ministro da Defesa turco, Yasar Guler, deu a conhecer ao jornal turco o que parecia ser uma resposta às observações de Sudani, redefinindo as condições para essa aproximação, afirmando
Noureddine argumenta que as condições rigorosas da Turquia impedem o progresso porque "a Turquia não quer a reconciliação com a Síria a não ser nas suas condições, esta trégua está a vacilar".
O "rochedo de Sísifo" que o Iraque enfrenta para reconciliar Damasco e Ancara pode não ser intransponível. Tendo Erdogan assegurado a sua vitória eleitoral, talvez já não precise de aproveitar o conflito sírio para obter ganhos políticos.
Além disso, o actual clima político nos EUA poderá ter impacto nos cálculos turcos. Se Donald Trump for reeleito presidente em Novembro, a Turquia poderá reavaliar a sua abordagem às áreas controladas pelos curdos no nordeste da Síria.
A instabilidade no norte da Síria é uma preocupação significativa para Ancara. O conflito regional em curso e os ataques às forças de ocupação dos EUA no leste da Síria por facções da resistência iraquiana levaram a um acordo temporário entre a administração Biden e Bagdade.
O factor EUA: Instabilidade regional e ocupação militar
Este acordo implica a suspensão das operações dos EUA contra as facções da resistência em troca da cessação dos ataques às bases americanas. Estes desenvolvimentos sugerem que a presença militar dos EUA no leste da Síria é cada vez mais vulnerável, embora seja improvável uma retirada durante a actual época eleitoral.
Mas tudo isso pode mudar se o republicano Trump conseguir afastar o presidente Joe Biden da Casa Branca.
Erdogan ainda se lembra de como Trump decidiu, durante a noite, falar sobre o absurdo da presença militar dos EUA no leste da Síria e a necessidade de retirar os soldados americanos de lá. Esta saída obrigará os turcos a recalcularem as suas relações com as zonas da "Administração Autónoma" curda no nordeste da Síria e poderá abrir uma porta necessária para contactar Damasco.
O "vazio" no norte da Síria é um cenário aterrador para Ancara. À luz da guerra que grassa na região há mais de oito meses, os analistas americanos estimam cada vez mais que a ocupação americana a leste do Eufrates sírio pode terminar se houver uma escalada de ataques das facções da resistência iraquiana e síria.
A administração Biden considerou um acordo temporário com o governo de Sudani: neste cenário, os EUA suspenderiam os seus assassinatos e ataques às facções da resistência iraquiana em troca da suspensão dos ataques contra as bases militares americanas - enquanto prosseguem as negociações entre Bagdade e Washington sobre o destino da presença das forças militares americanas no Iraque.
Estes desenvolvimentos reforçaram as avaliações de que as tropas americanas estacionadas no leste da Síria se tornaram mais expostas e vulneráveis. Mas qualquer ideia de retirada militar agora, numa época de eleições, suscitará críticas contra Biden. É mais provável que a saída das forças americanas ocorra no ano seguinte às eleições, seja quem for que assuma a Sala Oval.
Exigências de Damasco - um compromisso de retirada
O Ministro dos Negócios Estrangeiros sírio, Faisal Mekdad, reiterou recentemente que qualquer diálogo com a Turquia deve envolver "promessas precisas que reflictam o compromisso da Turquia de se retirar dos territórios que ocupa e de deixar de apoiar as organizações terroristas".
Em declarações ao The Cradle, o analista político turco Albatakin Dursunoglu diz que a aventura síria de Erdogan "trouxe não só encargos económicos e sociais a Ancara, mas também encargos geopolíticos", recordando como Erdogan pressionou os EUA para impedir Damasco de levar a cabo uma operação militar para libertar Idlib das garras das facções armadas em 2018:
Segundo Dursunoglu, "isto significa que milhares de militantes, que Ancara considera terroristas, virão para a Turquia, pelo que Ancara está a tentar resolver as duas questões dos dois quase-Estados, que representam uma ameaça para a sua segurança nacional e constituem uma importante questão geopolítica para o país".
A oposição do Departamento de Estado norte-americano às eleições municipais nas zonas controladas pelos curdos a leste do Eufrates e a declaração de Erdogan contra um Estado "terrorista" no norte da Síria complicam ainda mais a situação. A recente visita "histórica" de Erdogan a Bagdade, destinada a fazer face à ameaça separatista curda, reflecte a sua estratégia de reforço da cintura de segurança de Ancara em território iraquiano e sírio.
Passaram quase dois meses desde a primeira visita de Erdogan a Bagdade em 12 anos. O seu objectivo central, informa uma fonte iraquiana ao The Cradle, é a aproximação ao Iraque no que diz respeito ao "dossier do terrorismo" - uma referência aos inimigos turcos, o Partido dos Trabalhadores do Curdistão (PKK) e as Forças Democráticas Sírias (SDF).
De facto, o Presidente turco tinha-se abstido de finalizar a sua visita ao Iraque até Bagdade anunciar a proibição do PKK. Este passo abriu caminho a entendimentos de segurança, cujo conteúdo Erdogan revelou ao afirmar que o seu país tenciona reforçar a "cintura de segurança" alargada da Turquia no território iraquiano e sírio para bloquear as saídas exploradas pelo partido.
Apesar dos fracassos anteriores de Erdogan em minar o PKK no Iraque, ele procura agora uma aliança com Bagdade, oferecendo incentivos como o aumento dos fluxos de água e o projecto "Estrada do Desenvolvimento". As eleições nas áreas controladas pelos curdos poderiam ter acelerado uma invasão turca, um cenário provavelmente indesejável nos cálculos eleitorais de Biden.
Potencial de reconciliação
O investigador turco Muhammad Alloush diz ao The Cradle que a cooperação com Damasco pode ser crucial para Ancara combater o projecto separatista curdo. No entanto, Javad Gok, consultor do Centro de Estudos Estratégicos da Turquia, continua pessimista, citando a relutância do governo turco em dar passos concretos para a normalização com Damasco:
No entanto, face aos numerosos desafios e ao ceticismo generalizado, há indícios de que a reconciliação entre a Síria e a Turquia pode ainda ser possível. O analista regional Muhannad al-Haj Ali fala ao The Cradle de "uma iniciativa iraquiana baseada na anterior iniciativa russa" e que "há fugas de informação que dizem que a Turquia concordou em retirar-se do território sírio" - uma exigência e condição fundamental estabelecida pelo governo sírio para a normalização com Ancara.
Numa altura em que Erdogan procura atenuar as perdas após a sua recente vitória eleitoral, o papel mediador do Iraque poderá ser fundamental, apresentando novas oportunidades para avanços diplomáticos.
Fonte:
Khalil Harb é um jornalista baseado em Beirute e antigo chefe de redacção do diário libanês Al-Safir. Trabalhou também para a Associated Press e para o jornal libanês An-Nahar. Khalil é licenciado pela Universidade Americana do Cairo.