O divórcio entre os interesses da burocracia europeia e as necessidades dos povos europeus já não pode ser escondido! Quando se aproximam de Kiev, afastam-se de nós!
A incapacidade do Ocidente colectivo, e especialmente dos EUA e da UE, para escapar ao efeito auto-destrutivo da sua empresa hegemónica está a tornar-se cada vez mais clara. Uma contradição não resolvida tornar-se-à cada vez mais evidente e acabará por ser, ela própria, a principal causa da destruição do seu criador.
Na UE, a submissão às contradições assume uma componente psicótica: finge-se que as sociedades europeias não estão em ebulição e que a guerra que ocorre em território ucraniano nada tem a ver com isso.
É por isso que, com a maioria dos Estados europeus e membros da UE desestabilizados pelas "manifestações", paralisações e lutas dos camponeses; pelo regresso da extrema-direita, do neofascismo e do racismo; com os povos da Europa a enfrentarem uma crise na habitação, na saúde pública, o aumento dos preços e o agravamento das condições de vida... O que preocupa a burocracia de Bruxelas e os seus "governadores" regionais, disfarçados de ministros e primeiros-ministros, é a Ucrânia, a guerra ucraniana e, ainda mais do que a Ucrânia, a Rússia e a russofobia que realmente ocupa as suas mentes.
No mesmo dia em que os dirigentes europeus realizavam uma cimeira e faziam todo o tipo de negociações clandestinas para garantir o desvio de mais 50 mil milhões de euros para o poço sem fundo de Kiev, a luta dos agricultores semeava o caos em Bruxelas. Não pode haver imagem mais clara do fosso cada vez maior entre as necessidades dos povos da Europa e as necessidades sentidas pelos seus "governantes" supostamente "democraticamente" eleitos.
Quanto mais a realidade europeia exige concentração e decisão perante o agravamento dos problemas internos, mais os partidos que estão ao serviço dos interesses de Bruxelas se atiram de cabeça para o abismo chamado Ucrânia. A tendência é tão clara que podemos confirmar a existência de uma "maldição de Kiev". Do Reino Unido à Finlândia, da Itália à Eslováquia e a muitos outros países, são muitos os exemplos de casos em que, quanto maior o apoio da opinião pública ao regime de Kiev, maior a degradação da sua imagem pública e maiores as hipóteses de o seu governo cair ou ser derrotado nas eleições. Para Scholz, nem as verduras de Baerbock o salvarão; para Macron, desta vez o medo de Le Pen será vencido pela certeza de que ele, o seu neoliberalismo e a sua submissão ao poder dos EUA/NATO também não são bons.
O que é certo é que, hoje, na União Europeia, podemos estabelecer um princípio empírico fundamental: quanto maior for o apoio de um governo a Kiev, maior será a negligência para com o seu próprio povo. A Ucrânia não é apenas o cancro que ameaça corroer toda a União, será também o fogo lento em que ela se consome.
Neste contexto, numa cidade de Bruxelas invadida por agricultores europeus, o Conselho aprovou os 50 mil milhões de euros para um período de 4 anos, dos quais 33 são emprestados e 17 são a fundo perdido. No entanto, o próprio processo de aprovação e o destino destes fundos ameaçam continuar a abrir buracos no chamado "projecto europeu". E é a partir do fundo que ele se está a desmoronar. Desta forma, a UE sucumbirá necessariamente, tal como os líderes do império, os EUA, às suas próprias contradições, cada vez mais profundas, antagónicas e irreconciliáveis.
Os 50 mil milhões atribuídos à Ucrânia são retirados do "Quadro Plurianual Europeu", ou seja, do orçamento da UE para os Fundos Estruturais Europeus, que se destinam ao desenvolvimento social, económico e cultural dos próprios Estados-membros. Embora Ursula Von Der "Liar" quisesse reprogramar 100 mil milhões de euros, teve de se contentar com 64,6 mil milhões. No entanto, a única rubrica que não sofreu alterações desde o início do processo foi a ucraniana. O que significa muito: A Ucrânia era, e continua a ser, a prioridade das prioridades. Nos EUA, no Reino Unido e na UE, encontramos o mesmo denominador comum: a prioridade aos conflitos externos aumenta à medida que a atenção aos problemas internos diminui. Os bolsos não são ilimitados e os líderes do Ocidente colectivo mostraram onde estão as suas principais preocupações. E como é que isto é possível?
O facto é que o que estava em causa era a reafectação de fundos para a "gestão das migrações", ou seja, para apoiar todo o aparelho europeu que mantém milhões de migrantes e refugiados fechados em campos de concentração, que existem apenas e só por responsabilidade dos países ocidentais. Tendo em conta a demagogia que a extrema-direita neofascista e europeia utiliza para falar do problema das "migrações" e de uma suposta "reposição populacional"; para quem se diz tão preocupado com o advento destas forças políticas; a UE não só aceita reduzir este montante de 15 para 9,6 mil milhões, como coloca 50 mil milhões nas mãos de um governo xenófobo, que persegue as minorias étnicas, a liberdade religiosa e suprime os partidos políticos, ao mesmo tempo que idolatra líderes nazis como Bandera, ou promove grupos neonazis como o Azov.
Outra questão que não mereceu a "prioridade" ucraniana foi a Plataforma de Tecnologias Estratégicas para a Europa (STEP), que tem por objectivo criar uma comunidade de interesses para promover as tecnologias de ponta produzidas na UE. Enquanto a famosa "Lei dos Chips" de Ursula Von Der Leyen, que deveria garantir a "independência europeia nos semicondutores", está a ser transformada na "Lei Intel" - uma vez que parece que é a empresa americana que vai garantir a maior parte dos 88 mil milhões de euros em subsídios para conseguir essa "independência" -, a Comissão Europeia, para não diminuir o "investimento" em Kiev, optou por reduzir o montante da "STEP" de 10 mil milhões para apenas 1,5. Parece que o conceito de "independência" na UE é cada vez mais definido como sendo "independente de toda a gente, mas nunca dos EUA"! especialmente dos EUA!
O esforço titânico para não cortar um único cêntimo nos fundos destinados a manter à tona um navio ucraniano cada vez mais instável será inversamente proporcional à diferença que fará no terreno. Estamos a falar de um regime que já recebeu mais de sete vezes esse montante em apenas dois anos e que, no entanto, está num estado de naufrágio iminente. Depois disso, é difícil perceber como é que 12,5 mil milhões por ano vão fazer a diferença. Tanto mais quando se assume, na própria declaração, que há problemas com a entrega de munições e que foi o próprio Borrel que disse que a UE só entregaria metade do que foi prometido dentro do prazo estabelecido.
Ou seja, a Comissão Europeia, apoiada pelo Conselho Europeu, levou os povos da Europa a investir mais 50 mil milhões, de que os seus países tanto precisam, para os entregar a outro país que não é membro da União, não faz parte da NATO e não cumpre os requisitos mais básicos para que os Estados membros possam receber subsídios. E que, para piorar, não fará qualquer diferença no estado deplorável em que a oligarquia que o governa o deixou. O objectivo, claramente, é apenas manter a guerra por mais algum tempo, fazendo parecer que, pelo menos até este "maldito" ano eleitoral passar, o prometido "apoio inesgotável" ao projecto ucraniano não vai acabar.
Mas o faz-de-conta não acaba aqui. Este suposto acordo não passou de um acordo, construído ao longo de meses, durante os quais a presidente plenipotenciária da Comissão Europeia foi obrigada a engolir alguns dos seus habituais disparates. O húngaro Viktor Orban foi o mais vocal e talvez o mais inflexível dos candidatos. No entanto, é também o mais agressivo.
A Comissão Europeia, que tinha retido mais de 21 mil milhões de euros de fundos comunitários, que já deviam ter sido pagos ao país magiar, foi obrigada a descongelar cerca de 10,2 mil milhões de euros, em Novembro. Uma espécie de "sinal de boa fé".
A ironia de tudo isto é que o dinheiro retido à Hungria é o resultado de uma avaliação de Bruxelas, segundo a qual o Governo tem vários problemas com a aplicação do "Estado de direito". Os mesmos que exigem que a Hungria cumpra as suas obrigações são os que dão 50 mil milhões a um país onde o "Estado de direito" é reconhecidamente inexistente.
Ou seja, os mesmos países que insistem em financiar Kiev, em montantes que nunca foram disponibilizados a nenhum membro da União, são os mesmos que, ao mesmo tempo que exigem que a Hungria seja penalizada pelo incumprimento do "Estado de Direito", se retraem, omitem e enganam os povos europeus, quando se trata de fazer a mesma exigência, e de punir por incumprimento, um país que nem sequer é membro da União Europeia. Se isto não passa todas as marcas do antagonismo e da hipocrisia...
A provar que o colete é cada vez mais curto quando se trata de lidar tacticamente com estes fogos criados pelo próprio império, assistimos também, no âmbito deste "acordo", à concessão de concessões aos agricultores de países como a Polónia, a Hungria e a Eslováquia, em relação à inundação dos seus mercados com produtos provenientes da Ucrânia. Esta excepção, aberta ao mesmo tempo que são levantadas as tarifas e as restrições à circulação de produtos agrícolas entre Kiev e a UE, não deixará de mobilizar os agricultores de outros países para obterem outro tipo de concessões. Para já, já se fala de uma moratória de um ano sobre o cumprimento de determinados objectivos ambientais. Mas isto é apenas o início. O que está em causa, como em tudo nos últimos anos, é a agenda irracional, ilógica e absolutamente incongruente da UE para a transição verde.
Vejamos agora com mais atenção: os requisitos ambientais e os objectivos da agenda de transição verde que a UE exige aos seus agricultores e que tanto condicionam a sua actividade, não têm, mais uma vez, correspondência no caso do projecto ucraniano. Mais uma vez, o projecto ucraniano merece toda a prioridade e excepção. O que é exigido aos seus, é dispensado quando o é aos que estão fora da UE. E é assim em tudo, desde a corrupção aos direitos humanos, passando pela democracia e até pela demonização da extrema-direita. Demonizada aqui pelo centro político, que cria as condições para a sua existência, é mais uma vez apoiada efusivamente em Kiev.
Por fim, espera-se também que os resultados económicos obtidos com os fundos russos congelados (os 300 mil milhões geram rendimentos elevados) sejam encaminhados para Kiev, supostamente para reconstruir o país. Se as sanções impostas à Rússia, ao Irão e a outros países já alertaram muitas pessoas para o perigo de manterem as suas reservas nos bancos ocidentais, este acto constitui um verdadeiro ultimato. Afinal, estão a apropriar-se de somas que não lhes pertencem, numa lógica velada de confisco, para as entregar a um Estado terceiro, contra a vontade do detentor do capital. Fazê-lo quando os principais motores da UE - França, Alemanha, Itália - enfrentam uma crise sem precedentes...
Tudo em nome de uma farsa que tem de continuar. Quanto tempo durará a UE sob o peso de contradições tão avassaladoras?
O divórcio entre os interesses da burocracia europeia e as necessidades dos povos europeus já não pode ser escondido! Quando se aproximam de Kiev, afastam-se de nós!
Fonte:
Hugo Dionísio é advogado, investigador e analista de geopolítica. É proprietário do Blog Canal-factual.wordpress.com e cofundador da MultipolarTv, um canal de Youtube direcionado para a análise geopolítica. Desenvolve actividade como activista dos Direitos Humanos e dos Direitos Sociais enquanto membro da Direcção da Associação Portuguesa dos Advogados Democráticos. É também investigador da Confederação Geral dos Trabalhadores Portugueses (CGTP-IN).