Não me lembro da minha vida sem livros para ler e cadernos para desenhar e pintar. Consigo visualizar claramente a minha infância rodeada de papel e lápis de cor, além de belos livros com ilustrações de personagens soviéticas e paisagens que me mostravam uma Europa coberta de neve e animais exóticos e peludos.
Em criança eram as minhas preferidas, as ilustradas. Mais tarde conheci as bandas desenhadas, e tinha duas ou três que sabia de cor, como Chicho Durañón, Súper López e outros cujos nomes me escapam, assim como os clássicos Matojo e Elpidio Valdés, e outros que apareciam nas revistas da época.
Conhecia a Mafalda porque uma vez a tive nas mãos, mas nunca tive um exemplar para mim até que, com quase 30 anos, consegui comprar Toda Mafalda, a um preço absurdo, na secção de livros usados da pequena livraria Centenario del Apóstol, situada na rua 25, 164, entre a rua Infanta e a rua O, em Vedado, na Plaza de la Revolución.
Vi-o lá e não acreditei: uma edição linda, enorme, muito pesada, de capa dura, até com sobrecapa, e feita de um material como o de “antes”; sim, nada como o papel de gazeta ou outro papel colorido semelhante de “cartucho” que não aguenta uma lágrima de um leitor sentimental. Em toda a Mafalda, era o único exemplar porque é assim na secção de segunda mão, só se encontram peças únicas. Por isso, o custo também correspondia a mais de um mês de salário completo. Mas não importa, valeu a pena.
Durante algum tempo, foi o maior livro da minha biblioteca, o mais precioso, o de melhor qualidade, o meu tesouro. Senti-me uma criança satisfeita, recuando 20 anos na minha vida, quando gostava tanto de banda desenhada, mas nessa altura não tinha a Mafalda, nem compreendia bem as suas exigências, porque as suas ilustrações pareciam infantis, enquanto os seus discursos tinham uma intensidade e questões fundamentadas que não eram nada infantis.
O curioso da personagem de Quino (Joaquín Salvador Lavado Tejón) é que, na aparência, é uma criança, mas reflecte sobre todos os aspectos do mundo e critica constantemente a sociedade com a linguagem de um adulto idealista, directo e espirituoso, o que deixa perplexos todos os que a rodeiam e também o leitor.
Com uma agudeza intelectual marcante, Mafalda demonstra curiosidade e preocupação com questões sociais da sua Argentina natal, comuns a todos os cantos do planeta. Justiça, paz, desigualdade, fome, política, economia, são temas que ela aborda e questiona com consciência, malícia, humor e ironia, com a intenção de nos ajudar a pensar.
Rodeada pela família e amigos, Mafalda encontra sempre uma forma de perguntar e responder às questões de forma espirituosa, quase terna, mas com um pensamento profundo, arrojado e ousado por detrás de cada razão que reflecte realidades que ainda persistem. Os seus argumentos desvendam ideias humanistas, contra a corrupção, a violência, o vulgar.
Mafalda é universal, o seu discurso atravessa fronteiras e épocas, é rebelde, irreverente, independente, apaixonada pelos Beatles, ecologista, feminista e pacifista, e a favor da liberdade de expressão.
Esta menina que odeia sopa nasceu em Março de 1962, mas foi publicada pela primeira vez na revista política Primera Plana, na Argentina, há exactamente 60 anos, em Setembro de 1964. A sua última banda desenhada foi publicada em Junho de 1973. Nessa altura, já era muito popular, conhecida pela sua linguagem mordaz.
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