Como o Equador me dói!
Após a saída do presidente Rafael Correa, o Equador iniciou um declínio que o levou ao abismo em que se encontra: miséria para a maioria, violência de todos os tipos, corrupção estatal desenfreada e um narcoestado. Tudo isso com a aprovação e o apoio aos governantes que sucederam Correa, a nova embaixada dos EUA.
Em Quito, em 24 de setembro de 1985, há 40 anos, em meio a um lindo sol de meio-dia, fui preso em uma operação realizada por membros da inteligência militar do Equador e da Colômbia.
Durante doze dias, fui mais um “detido-mdesaparecido”. A minha família e amigos vivenciaram a experiência de ter alguém cuja morte era desconhecida porque ninguém conseguia identificá-lo, mas que existia porque não havia corpo. Os serviços de “segurança” negaram minha prisão, embora tudo indicasse que sabiam, já que muitas testemunhas estiveram presentes na prisão. Testemunhas que, quando interrogadas posteriormente, não sabiam de nada, por medo.
Foram doze dias de tortura, onde aprendi em primeira mão o que já haviam dito os meus colegas que caíram nas mãos desses doentes e que, como eu, tiveram a sorte de escapar com vida.
Quando perceberam que eu não tinha nada a ver com as organizações guerrilheiras da Colômbia ou do Equador, mandaram-me para a prisão, como se nada tivesse acontecido. Como se o meu corpo e cérebro não carregassem as marcas daqueles dias e noites sem dormir, de espancamentos brutais e choques eléctricos.
Vi a miséria humana daqueles que servem e defendem essa classe social que os explora por um salário miserável, mas os despreza. O problema é que todos fazem isso por prazer, seja porque são doentes mentais ou porque acreditam estar a defender a "pátria".
Ouvir os torturadores dizerem-me que, se eu não falasse, eles violariam a minha filha, que tinha apenas um ano e meio de idade. Ouvir e vê-los torturar e violar colectivamente uma colega, enquanto riam. Saber que, quando ligavam o rádio no volume máximo, estavam a torturar alguém. Bêbados vinham dizer-me que tinham capturado alguém, alguém que eu não conhecia pessoalmente, mas sabia os seus nomes, e que havia sido entregue a policiais femininas para ser violado, acabando assim com “o machismo daqueles guerrilheiros”.
Numa madrugada gelada, dessas que sabem fazer em Quito, tiraram-me da cela de tortura para não sei onde, mas no mesmo lugar. Tiraram-me o capuz, mas deixaram as ligaduras. E como eu as usava há vários dias, tinham-se soltado do meu rosto e, se levantasse um pouco a cabeça, conseguia ver o que se passava à minha volta. Foi assim que consegui avistar aquela companheira que eu conhecia bem, que tinha tido o seu bebé três dias antes. Tinham-na de pé naquele pátio, com o bebé nos braços. Acho que tremia de frio. Viu-me passar. Anos mais tarde, disse-me que me reconheceu, mas que me ignorou. Tal como eu a ignorei. Ali perto, torturavam o seu companheiro, e ela ouvia os seus gritos.
A tortura dói, e muito. Também se mistura com a impotência de não poder fazer nada para em defenda. Nesses momentos, tudo o que resta é a consciência de que estás ali porque estás lutar por um mundo melhor. O objectivo é quebrar teu moral e sua consciência. Fazer-te chibar, mesmo que saibam o que estás a dizer, mas eles destruíram-te. É claro: eu nunca vou apontar o dedo para aqueles que falaram, mesmo que tenham tentado segurar-se.
Anos depois, voltei ao Equador. Rafael Correa era o presidente. O Equador era um lugar diferente. A mudança tinha sido enorme. Era possível sentir, cheirar e vivenciar em cada canto. Posso dizer isso porque vivi naquele lindo país por cerca de três anos. E a coisa mais linda que encontrei na segunda vez que voltei: fui dançar na região da Avenida Amazonas. E ao amanhecer, não encontrei, como era "normal", meninos ou meninas de uniforme escolar a vender flores, dormir no chão enquanto suas mães vendiam alguma coisa, ou a pedir esmola. Isso tranquilizou-me, pois no Equador a vida estava a chegar para a maioria. Que felicidade eu senti!
Fui ao Equador quatro vezes durante o governo Rafael Correa, duas delas para cobrir a situação para o Le Monde Diplomatique. Portanto, posso dizer que testemunhei as suas mudanças.
Correa tornou o Equador um país de destaque internacional. Nunca antes um presidente foi tão ouvido e aplaudido por milhares de pessoas. Universidades do mundo todo o convidaram, como a Sorbonne, em Paris, e a polícia foi necessária para conter as centenas de pessoas que não conseguiram entrar por falta de espaço.
Galo Chiriboga, então Procurador-Geral da Nação, convidou-me a depor perante o Estado sobre a minha tortura. Quando o tribunal aceitou o meu depoimento como verdadeiro, fui nomeado um “sobrevivente” daquele período sombrio no Equador.
Para fazer meus primeiros depoimentos, fui levado à embaixada americana recentemente desocupada, pois os seus escritórios tinham sido transferidos, assim como o Gabinete do Procurador-Geral. O próprio Procurador-Geral convidou-me para visitar vários andares. E disse-me algo quase em confissão: para muitos funcionários virem trabalhar lá, missas especiais tinham que ser celebradas, pois os “espíritos malignos” que ali se sentiam precisavam ser expulsos. Uma senhora da limpeza disse-me que havia partes em que ela não ousava entrar porque se sentia “com medo”: “Não importa quanto me paguem, eu não vou!”
"Quantos crimes e maldades foram preparados neste lugar?", perguntou-se o promotor enquanto caminhávamos pelo prédio sombrio.
Após a saída do presidente Rafael Correa, o Equador iniciou um declínio que o levou ao abismo em que se encontra: miséria para a maioria, violência de todos os tipos, corrupção estatal desenfreada e um narcoestado. Tudo isso com a aprovação e o apoio aos governantes que sucederam Correa, a nova embaixada dos EUA.
Como me dói este Equador
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